Uma portaria que envergonha o País
Para elucidar o conteúdo da recente Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho e demonstrar a leniência com a exploração do trabalhador, satisfazendo a bancada ruralista – que derramou votos em favor de Temer –, cumpre ter presentes dois textos, o do Código Penal e o da portaria.
É crime, segundo o artigo 149 do Código Penal, “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Pena: reclusão de dois a oito anos.
A citada Portaria 1.229 limita absurdamente os conceitos contidos no Código Penal, acima transcritos, pois enuncia o seguinte: “trabalho forçado” é “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade”; “jornada exaustiva” consiste na “submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”; “condição degradante” caracteriza-se por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem a privação da sua dignidade; e “condição análoga à de escravo” vem a ser a “submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária”.
A injustiça e a inconstitucionalidade da portaria brotam claras a partir de breve análise de seus termos em face do constante no Código Penal. Podese ver que na definição de trabalho forçado se coloca como requisito ser ele exercido sem consentimento do empregado, aceitando, portanto, como se normal fosse, o trabalho forçado consentido!
É certo, todavia, como expus em Código Penal Comentado
(São Paulo-Saraiva, 2017), que o consentimento do trabalhador em se submeter às condi- ções de trabalho degradante não exclui o crime nem torna a conduta atípica, pois a sujeição é já fruto da ausência de liberdade para a escolha de outro trabalho, do que se vale o patrão para explorar o empregado.
Na conceituação de jornada exaustiva, a portaria acresce, com esperteza, que esta só se configura se contrariar a vontade do trabalhador e houver privação do seu direito de ir e vir. Confunde-se a situação análoga à de escravo com perda da liberdade física, isto é, do poder de locomoção, como se, havendo locomoção, não houvesse situação análoga à de escravo. A portaria entende ser “condição degradante” a violação de direitos fundamentais, consubstanciados em cerceamento da liberdade de ir e vir, por qualquer meio. É grave a redução do trabalho escravo apenas à limitação de direitos que atinjam a liberdade de ir e vir, pois a sujeição ao empregador tem formas mais ardilosas que a impossibilidade de locomoção.
A ministra Rosa Weber, do STF, ao conceder liminar para suspender os efeitos da portaria, bem asseverou: “Como revela a evolução do Direito Internacional sobre o tema, a ‘escravidão moderna’ é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos”. A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.
Com manifesta má-fé, a portaria estipula definições de situação análoga à de escravo, sendo uma delas a submissão a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária, como se fosse possível voluntariedade sob coação. É forma sibilina de dar argumentos de defesa ao empregador escravista: “Coagi, mas o trabalho se deu de maneira voluntária”!
Com razão, portanto, a então secretária de Direitos Hu- manos, Flávia Piovesan, que reagiu à edição da portaria, publicada sem consulta a ela, presidente da comissão encarregada de combater o trabalho escravo. Disse a secretária: “A portaria viola frontalmente a Constituição, viola a legislação nacional, o artigo 149 do Código Penal e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. (...) a portaria vai na contramão e reduz drasticamente o alcance conceitual de trabalho escravo. Ou seja, o trabalho forçado só vai ser caracterizado se houver cerceamento da liberdade”.
Condicionar a caracterização de trabalho escravo à perda da locomoção e ao não consentimento do trabalhador é nulificar a repressão e atirar por terra um esforço de anos começado no governo Fernando Henrique, além de sua ínsita injustiça.
Com efeito, iniciou-se em 1995 o combate ao trabalho escravo por via do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), os quais, por sua atuação até 2003, libertaram mais de 45 mil pessoas. O Gertraf foi substituído em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
Houve um esforço conjunto, com a participação do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, do Ministério do Trabalho e da Conatrae, visando a libertar e a reabilitar os trabalhadores escravizados. Na minha passagem pelo Ministério da Justiça tive profícuo entendimento com então ministro do Trabalho, Pedro Jobim, para uma ação conjunta dos grupos (Gertraf e GEFM) com a Polícia Federal.
Ademais, retirou-se, na portaria, autonomia do órgão técnico ao se submeter a caracterização da infração e a inscrição do patrão escravista no cadastro dos maus empregadores à decisão política do ministro do Trabalho. Essas medidas contentaram a bancada ruralista, mas envergonham o País.
Trabalho escravo não se caracteriza por perda da locomoção e não consentimento