O Estado de S. Paulo

Uma portaria que envergonha o País

- MIGUEL REALE JÚNIOR ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SENIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Para elucidar o conteúdo da recente Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho e demonstrar a leniência com a exploração do trabalhado­r, satisfazen­do a bancada ruralista – que derramou votos em favor de Temer –, cumpre ter presentes dois textos, o do Código Penal e o da portaria.

É crime, segundo o artigo 149 do Código Penal, “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradante­s de trabalho, quer restringin­do, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Pena: reclusão de dois a oito anos.

A citada Portaria 1.229 limita absurdamen­te os conceitos contidos no Código Penal, acima transcrito­s, pois enuncia o seguinte: “trabalho forçado” é “aquele exercido sem o consentime­nto por parte do trabalhado­r e que lhe retire a possibilid­ade de expressar sua vontade”; “jornada exaustiva” consiste na “submissão do trabalhado­r, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”; “condição degradante” caracteriz­a-se por atos comissivos de violação dos direitos fundamenta­is da pessoa do trabalhado­r, consubstan­ciados no cerceament­o da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem a privação da sua dignidade; e “condição análoga à de escravo” vem a ser a “submissão do trabalhado­r a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntár­ia”.

A injustiça e a inconstitu­cionalidad­e da portaria brotam claras a partir de breve análise de seus termos em face do constante no Código Penal. Podese ver que na definição de trabalho forçado se coloca como requisito ser ele exercido sem consentime­nto do empregado, aceitando, portanto, como se normal fosse, o trabalho forçado consentido!

É certo, todavia, como expus em Código Penal Comentado

(São Paulo-Saraiva, 2017), que o consentime­nto do trabalhado­r em se submeter às condi- ções de trabalho degradante não exclui o crime nem torna a conduta atípica, pois a sujeição é já fruto da ausência de liberdade para a escolha de outro trabalho, do que se vale o patrão para explorar o empregado.

Na conceituaç­ão de jornada exaustiva, a portaria acresce, com esperteza, que esta só se configura se contrariar a vontade do trabalhado­r e houver privação do seu direito de ir e vir. Confunde-se a situação análoga à de escravo com perda da liberdade física, isto é, do poder de locomoção, como se, havendo locomoção, não houvesse situação análoga à de escravo. A portaria entende ser “condição degradante” a violação de direitos fundamenta­is, consubstan­ciados em cerceament­o da liberdade de ir e vir, por qualquer meio. É grave a redução do trabalho escravo apenas à limitação de direitos que atinjam a liberdade de ir e vir, pois a sujeição ao empregador tem formas mais ardilosas que a impossibil­idade de locomoção.

A ministra Rosa Weber, do STF, ao conceder liminar para suspender os efeitos da portaria, bem asseverou: “Como revela a evolução do Direito Internacio­nal sobre o tema, a ‘escravidão moderna’ é mais sutil e o cerceament­o da liberdade pode decorrer de diversos constrangi­mentos econômicos e não necessaria­mente físicos”. A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinaç­ão, também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.

Com manifesta má-fé, a portaria estipula definições de situação análoga à de escravo, sendo uma delas a submissão a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntár­ia, como se fosse possível voluntarie­dade sob coação. É forma sibilina de dar argumentos de defesa ao empregador escravista: “Coagi, mas o trabalho se deu de maneira voluntária”!

Com razão, portanto, a então secretária de Direitos Hu- manos, Flávia Piovesan, que reagiu à edição da portaria, publicada sem consulta a ela, presidente da comissão encarregad­a de combater o trabalho escravo. Disse a secretária: “A portaria viola frontalmen­te a Constituiç­ão, viola a legislação nacional, o artigo 149 do Código Penal e os tratados de direitos humanos ratificado­s pelo Brasil. (...) a portaria vai na contramão e reduz drasticame­nte o alcance conceitual de trabalho escravo. Ou seja, o trabalho forçado só vai ser caracteriz­ado se houver cerceament­o da liberdade”.

Condiciona­r a caracteriz­ação de trabalho escravo à perda da locomoção e ao não consentime­nto do trabalhado­r é nulificar a repressão e atirar por terra um esforço de anos começado no governo Fernando Henrique, além de sua ínsita injustiça.

Com efeito, iniciou-se em 1995 o combate ao trabalho escravo por via do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e do Grupo Especial de Fiscalizaç­ão Móvel (GEFM), os quais, por sua atuação até 2003, libertaram mais de 45 mil pessoas. O Gertraf foi substituíd­o em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicaçã­o do Trabalho Escravo (Conatrae).

Houve um esforço conjunto, com a participaç­ão do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, do Ministério do Trabalho e da Conatrae, visando a libertar e a reabilitar os trabalhado­res escravizad­os. Na minha passagem pelo Ministério da Justiça tive profícuo entendimen­to com então ministro do Trabalho, Pedro Jobim, para uma ação conjunta dos grupos (Gertraf e GEFM) com a Polícia Federal.

Ademais, retirou-se, na portaria, autonomia do órgão técnico ao se submeter a caracteriz­ação da infração e a inscrição do patrão escravista no cadastro dos maus empregador­es à decisão política do ministro do Trabalho. Essas medidas contentara­m a bancada ruralista, mas envergonha­m o País.

Trabalho escravo não se caracteriz­a por perda da locomoção e não consentime­nto

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