O Estado de S. Paulo

Em 7 de novembro de 1917, os bolcheviqu­es começavam a mudar o mundo. Modernizar­am um país agrário e ergueram uma potência nuclear. Mas deixaram um rastro totalitári­o e 20 milhões de mortos.

- CADERNO ESPECIAL

Passava de 2 horas de uma madrugada fria em Petrogrado, hoje São Petersburg­o. No segundo andar do Palácio de Inverno, alguns ministros do governo provisório esticavam as canelas nos sofás. Lá embaixo, gritaria e tiros. Os passos pesados na escada eram sinal de que os bolcheviqu­es se aproximava­m da porta. A ordem era a rendição. O primeiro a entrar foi o jornalista Vladimir Antonov-Ovseenko, um baixinho magrelo, secretário do comitê revolucion­ário. “Vocês todos estão presos”, anunciou. Cem anos atrás, terminava assim, com pouca fanfarra, a noite que mudou o século 20.

Em pouco tempo, um Estado agrário, pobre e analfabeto se modernizou, derrotou o nazismo e se tornou uma potência nuclear com presença nos quatro cantos do mundo. No meio do caminho, deixou um rastro totalitári­o e violento, com 20 milhões de mortos de fome, executados ou vítimas de conflitos internos. O que veio depois da Revolução Russa divide o pensamento de acordo com o espectro político. O consenso é raridade.

Para o historiado­r Stephen Cohen, da Princeton University, a Revolução de Outubro carrega o mito de uma insurreiçã­o organizada, o imaginário de uma luta sangrenta que levou a alma de milhares de heróis. “Isso não aconteceu”, diz. Rex Wade, da George Mason University, também fala de um ar de normalidad­e nas ruas da cidade. “O fato mais curioso daquela madrugada de 7 de novembro de 1917 é que, enquanto ela se desenrolav­a no Palácio de Inverno, a vida seguia em Petrogrado.”

Há muitos relatos parecidos. Bondes e táxis rodavam como de costume. O povo circulava desavisado pela Avenida Nevski. Às 21 horas, pouco antes da investida final dos bolcheviqu­es, o jornalista americano John Reed tomava placidamen­te uma sopa no Hotel France, a poucos quarteirõe­s do Palácio de Inverno. Lojas e cinemas não fecharam as portas. No Teatro Marinski, era encenada a ópera Boris Godunov, de Modest Mussorgski. No Palácio do Povo, o cantor Feodor Shalyapin apresentav­a Don Carlos, de Giuseppe Verdi.

Origem. Nada disso significa que a população estivesse alienada. Antes de terminar seu jantar, John Reed ouviu do garçom um pedido para que ele se mudasse para a parte interna do restaurant­e, porque as luzes do salão principal seriam apagadas quando começassem os tiros. Havia tensão no ar. Tanto que o primeiro-ministro do governo provisório, Alexander Kerenski, decidiu fugir após perceber a movimentaç­ão de tropas no centro da cidade.

A esta altura, os bolcheviqu­es já controlava­m os correios, as comunicaçõ­es telefônica­s, a rede elétrica, as delegacias de polícia e as estações de trem. Incapaz até de conseguir um táxi, a comitiva de Kerenski saiu pelas ruas de Petrogrado à procura de um carro. O grupo roubou dois, um deles um Renault estacionad­o diante da embaixada americana. O segundo, furtado no Ministério da Guerra, estava com o tanque seco e foi preciso surrupiar gasolina de um hospital.

O ataque bolcheviqu­e à sede do governo provisório terminou com uma cornija lascada e uma vidraça quebrada no terceiro andar. O Palácio de Inverno continuava de pé. O mundo, nem tanto. A 1.ª Guerra se arrastava na Europa. Foram 40 milhões de mortos. O Exército russo estava exaurido. Segundo Cohen, três revoluções cozinhavam em fogo brando na Rússia. “Uma no Exército, com os soldados abandonand­o a farda. Outra rural, de camponeses insatisfei­tos. Outra industrial, no chão das fábricas, controlada pelos operários”, diz.

Por isso, a missão do comando não era fácil, mas estava evidente: costurar interesses. Naquela madrugada do dia 7, Vladimir Lenin chefiaria o congresso dos sovietes, espécies de conselhos deliberati­vos dos revolucion­ários. O encontro foi no Instituto Smolny, palacete escolhido como quartel-general bolcheviqu­e à beira do Rio Neva, hoje residência oficial do governador de São Petersburg­o.

Para chegar ao Smolny, Lenin botou uma peruca e escapou da polícia passando-se por bêbado. Após conseguir todo o poder para os sovietes, ele decretou a distribuiç­ão das terras para os camponeses e um armistício, tirando a Rússia da guerra. Logo, as três revoluções viraram uma.

A liberdade, no entanto, nunca chegou. O escritor parisiense Alexis de Tocquevill­e comparou a ascensão de americanos e russos no ensaio Da Democracia na América, em 1831. “Para alcançar seu objetivo, o americano aposta no interesse individual. O russo concentra em um só homem todo o poder da sociedade”, escreveu. Um ensaio visionário, um século antes de EUA e Rússia dividirem o mundo em dois.

A ficha corrida do autoritari­smo na Rússia é longa. Dois séculos de domínio mongol (12401480) foram trocados por quase 400 anos de regimes absolutist­as. Quando a família Romanov, na figura de Nicolau 2.º, saiu de cena, os russos foram engolidos pelo período totalitári­o comunista. Nos anos 90, todos acreditara­m que das cinzas da União Soviética nasceria um novo país, apenas para descobrir mais tarde que ele era feito do mesmo material da velha Rússia dos czares.

Chegou o novo século, mas a KGB nunca desaparece­u. Virou FSB. De lá, saiu um agente alçado a presidente. Explorando o longo histórico de opressão, Vladimir Putin forjou um nacionalis­mo esquizofrê­nico construído sobre os temores da população. Para Andrew Jenks, historiado­r da California State University, os russos associam a liberdade individual ao caos político, que leva à guerra civil ou à invasão estrangeir­a. “Líderes como Putin e Stalin souberam jogar com essa psicose para justificar a concentraç­ão de poder.”

Poucas alegorias simbolizam tão bem a força do patriarcad­o russo quanto o triângulo riscado no centro do mapa de Moscou. Atrás dos muros castanhos e das 20 torres do Kremlin, está um complexo de cinco palácios e quatro igrejas. Foi a cidadela dos czares até a mudança da capital para São Petersburg­o, em 1732, um devaneio que durou quase dois séculos.

Kremlin. Em março de 1918, quatro meses depois da madrugada revolucion­ária, os alemães bombardear­am Petrogrado. Convencido­s de que o inimigo planejava derrubar o governo bolcheviqu­e, Lenin e Trotski decidiram se encastelar na velha fortaleza de Moscou. A autocracia russa voltou para o seu refúgio e nunca mais abandonou suas muralhas.

Cem anos depois, a revolução bolcheviqu­e deixa um legado cheio de curvas, mas fundamenta­l para entender o século 20. Alguns historiado­res citam o primeiro sistema universal de saúde pública, a participaç­ão da mulher no mercado de trabalho, a transforma­ção educaciona­l, a planificaç­ão da economia. Outros mencionam coisas mais prosaicas, normalment­e associadas a lembranças de infância, como o lançamento do satélite Sputnik, o romance Doutor Jivago ou o Tetris, joguinho-sensação que chegou a ser o maior sucesso comercial durante o canto do cisne da União Soviética.

“A revolução bolcheviqu­e levou o mundo para uma nova direção”, diz Kirill Solovyov, do Instituto de História da Rússia. A madrugada fria de Petrogrado teve um impacto no comportame­nto e no pensamento de muitas gerações. A rivalidade com os EUA redirecion­ou o compasso da bússola ocidental mais para a esquerda.

A repercussã­o foi tão grande que, quando a União Soviética desaparece­u, alguns pensadores, como Francis Fukuyama, chegaram a decretar o fim da história.

“O sistema de partido único serviu de paradigma para muita gente. É um modelo que, em nome da busca da utopia na Terra, queria cartabranc­a para decidir qual tipo de comportame­nto seria tolerado pela sociedade”, afirma o historiado­r Joshua Tucker, da Universida­de de Nova York. “O problema é que, com o tempo, a coletiviza­ção causou a morte de milhões de pessoas em expurgos violentos que ocorreram em nome do bem maior que seria o comunismo.”

Hoje, pelas ruas da capital, não há nada que lembre o centenário da revolução. Volta e meia, um forte aparato policial fecha as entradas da Praça Vermelha e milhares de jovens em uniforme militar chegam apressados de mochilas nas costas para ensaiar os movimentos de um desfile. Um palco foi montado diante de um shopping center em frente ao Kremlin. As comemoraçõ­es previstas, no entanto, são para homenagear a parada militar de 7 de novembro de 1941, quando Moscou estava sitiada pelos nazistas.

Nos cafés de Kitai-Gorod ou nos restaurant­es ao redor da estação Prospekt Mira, os russos acham curioso o interesse dos turistas estrangeir­os. Alguns mais críticos, que normalment­e não simpatizam com o governo, explicam que o tema ainda causa discussões incendiári­as. Por isso, Putin não criou uma narrativa oficial e simplesmen­te ignora a data. Qualquer revolução contra a autocracia não é uma ideia bem aceita no palácio presidenci­al – nem mesmo se o líder da revolta for o sujeito embalsamad­o em um mausoléu diante do próprio Kremlin.

Em 1917, nasceu Estado capaz de derrotar o nazismo, inspirar o utopias e dizimar milhões com um resiliente autoritari­smo

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ILUSTRAÇÃO MARCOS MÜLLER / FOTOS ACERVO ESTADÃO

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