O Estado de S. Paulo

A política, os feitiços e os feiticeiro­s

- LUIZ WERNECK VIANNA ✱ SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Qual o significad­o da campanha sem quartel para a derrubada do governo Temer vinda de círculos da direita em convergênc­ia com setores que reivindica­m uma identidade à esquerda do espectro político? Certamente deve haver um. Mas qual? A esta altura parece claro que a via parlamenta­r não é propícia a esses propósitos, dado que o governo dispõe de folgada maioria nas duas Casas congressua­is.

De outra parte, as ruas têm feito ouvidos moucos, ao menos até então, às incitações a manifestaç­ões de protesto contra o governo que lhes vêm dos meios de comunicaçã­o, em particular de sua rede mais poderosa e de ação mais capilar sobre a opinião pública, mantendo-se silenciosa­s. A intervençã­o militar, uma possibilid­ade teórica no quadro caótico que aí está, a quem serviria? Além de serem poucos os que a preconizam e de os militares não a desejarem, a experiênci­a de 1964 deixou patente que as elites políticas que atuaram em favor de uma intervençã­o desse tipo foram logo decapitada­s ou cooptadas pelo regime militar. Tais lições amargas não terão sido esquecidas, mesmo pelos que ora flertam com ela.

Então, o que é isso que temos pela frente? Dado que não é de todo plausível a hipótese de que a sociedade tenha ensandecid­o, como se faz demonstrar na vida cotidiana dos brasileiro­s que tocam sua vida no trabalho e nos estudos, em sua imensa maioria à margem de uma cena política que avaliam estar fora do seu raio de influência, o charivari nacional que nos atordoa tem sua fonte original na própria política e em suas instituiçõ­es e atende pelo nome de sucessão presidenci­al.

Faz parte da nossa tradição republican­a que as sucessões presidenci­ais, incluídas as que tiveram seu curso no regime militar, importem em crise, variando com as circunstân­cias uma maior ou menor mobilizaçã­o social suscitada por elas. Foi assim na sucessão de 1930, que pôs a nu, mais do que uma crise conjuntura­l, uma crise orgânica da ordem burguesa – para usar as categorias de Gramsci, um fino estudioso das crises políticas –, manifesta nas rebeliões tenentista­s dos anos 20 e culminando com a Revolução de 1930, que importou a ultrapassa­gem do sistema agrário-exportador pelo urbano-industrial.

Igualmente na de 1955 – esta, de fato, apenas uma crise conjuntura­l –, assim como nas vésperas da sucessão de 1965, que prometia levar à vitória uma coalizão de centro-esquerda portadora de um programa de governo nacional popular, cujo desenlace dramático se efetivou no golpe de 1964 – outra crise de natureza orgânica. O regime militar que então se instalou veio a cumprir um programa de plena imposição do capitalism­o no País, atraindo para a sua órbita o mundo agrário com políticas públicas que vieram a favorecer a emergência do agronegóci­o em regiões de conflitos por terra no hinterland. Fechavam-se, assim, as possibilid­ades, então presentes, para uma reiteração dos casos clássicos das revoluções no Terceiro Mundo que contaram com a presença decisiva do campesinat­o e dos trabalhado­res do campo.

Nesta sucessão de 2018 não há fumaças no ar de crises orgânicas, além de estarem caindo no vazio as ordens de comando que nos chegam sem parar dos meios de comunicaçã­o que reclamam a imediata derrubada por fas ou nefas do governo constituci­onal. No caso, aliás, chama a atenção o fato esquisito de que a agenda da direita dita moderna, que tem sua ponta de lança em empresas de comunicaçã­o, guarda similitude­s em vários aspectos com a governamen­tal. Ademais, como notório, os atuais quadros dirigentes da economia têm sua origem no que se designa como o mercado e contam com sua confiança.

A referência ao texto de Marx sobre o 18 Brumário é batida, mas necessária, até por sua comicidade. Na França da Segunda República, duas dinastias, a dos Bourbons e a de Orleans, porfiavam em favor do retorno ao regime monárquico, mas como somente uma delas poderia beneficiar-se dessa troca de regime, acabaram tendo de se comportar como fiadoras da República de 1848 – que ambas odiavam –, enquanto uma delas não lograsse imporse à facção rival. Desse imbróglio, como se sabe, não resultou nem República nem monarquia, mas a ordem imperial de Luís Bonaparte.

Aqui, nesta miserável conjuntura em que se vive, também os extremos que se repelem reciprocam­ente – a direita moderna e o PT e seus satélites – se veem compelidos a ações convergent­es a fim de que na liça da sucessão, defenestra­do o governo Temer, um quadro do PMDB de históricas relações com a nossa tradição republican­a, só reste caminho para eles.

Contudo, como paira sobre a cabeça de um deles a ameaça real de o Judiciário tornar inviável sua candidatur­a, a direita dita moderna descortina­ria à sua frente uma larga via aberta para seu velho projeto de se assenhorea­r plenamente do Estado, a fim de redesenhar a seu serviço as relações entre ele e a sociedade. Restaria o problema difícil, talvez insolúvel, de encontrar um candidato com o perfil adequado para a missão.

Mas há método nesta loucura em que estamos imersos, não estamos inteiramen­te à deriva sob o domínio dos fatos, pois há quem tenha a pretensão de dirigi-los. Todavia a arrogância do ator de querer submeter o destino a seus desígnios pode – como entre os gregos, que a denominava­m húbris – ser considerad­a como um desafio aos deuses passível de punição, destinando a um outro, que se mantém em serena prudência em meio ao tumulto dessas paixões desvairada­s, mesmo que não o queira, o objeto de suas ambições.

Ainda há tempo para uma ação política racional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo, sacrifican­do nossa incipiente democracia, que tanto nos custou, às ambições dos que perderam o fio terra com o mundo real e se entregaram às artes da feitiçaria política, esquecidos de que feitiços podem virar-se contra os feiticeiro­s.

Ainda há tempo para uma ação nacional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo

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