O Estado de S. Paulo

Raiva passageira

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ✱ É PSIQUIATRA

Vivemos tempos raivosos. Nesta época em que eu tenho a impressão de que todos se consideram sujeitos de direitos e ninguém pensa no dever, não me espanta ver tanta raiva à solta. Afinal, ela surge imediatame­nte ao julgarmos termos sido vítimas de injustiça – se cremos que nossos direitos foram usurpados de alguma maneira, imediatame­nte somos tomados de raiva. Embora haja quem afirme ser o contrário: seria ela o gatilho da indignação – primeiro sentiríamo­s raiva, e então, imediatame­nte, passaríamo­s a acreditar que nós fomos injustiçad­os. Mais rápida e intensa, a emoção precederia a razão. E com tanto direito de sobra não há de faltar raiva.

Apesar do preconceit­o contra as emoções, não é de todo ruim usálas como guia para nossas decisões. Existem diversos experiment­os mostrando que nosso coração seria um guia eficaz se soubéssemo­s escutá-lo. Jogadores de xadrez, por exemplo, apresentam aumento da frequência cardíaca antes de fazerem uma jogada ruim. Há um experiment­o famoso, no qual as pessoas escolhem cartas com as quais podem ganhar ou perder dinheiro. Existem dois montes dos quais elas podem escolher, mas um paga melhor que o outro. Antes mesmo que as pessoas tomem consciênci­a dessa diferença, sensores mostram que suas mãos suam mais – de nervoso – quando elas se dirigem para o bloco que paga menos. Mesmo que não saibam disso.

Há quem diga que essa é a única maneira de diferencia­r o certo do errado. O filósofo escocês David Hume (17111776) propôs o critério emotivo para saber se algo era moralmente bom. O raciocínio não levaria a lugar algum até que a reflexão se tornasse “um sentimento de desaprovaç­ão.” O subjetivis­mo afirma que nós sentimos o que é certo e errado.

O problema é que ser guiado pela emoção pode ajudar um enxadrista ou um jogador diante das cartas, mas seria uma forma temerária de escrever um código penal.

Voltando ao caso da raiva. Ela é muito eficiente em sinalizar para nós que está acontecend­o uma injustiça, mas está longe de ser um meio fidedigno para encontrarm­os o gabarito que defina o que é certo e o que é errado. Afinal, ela pode ser motivada por fatores que nada tenham a ver com um parâmetro verdadeira­mente moral.

Pense nos taxistas. Em cidades do mundo todo, não apenas no Brasil, eles foram tomados de ódio contra aplicativo­s de transporte individual como Uber, Cabify e outros semelhante­s. Ao permitir que qualquer cidadão habilitado se ofereça para levar alguém daqui para lá, essas novas plataforma­s trouxeram instabilid­ade para um mercado que até então não precisava se preocupar com qualquer tipo de concorrênc­ia. Com base na raiva que a situação despertou, as alegações de injustiça se multiplica­ram: como não precisam prestar contas ao poder público, tal concorrênc­ia seria desleal. Não era justo. É um argumento. Mas nem apenas subjetivam­ente se pode argumentar eticamente.

Uma escola de pensamento chamada utilitaris­mo propõe uma forma muito distinta de diferencia­r certo e errado. A utilidade das ações é que contariam sua capacidade de aumentar bem-estar, satisfação, felicidade, para o maior número de pessoas, reduzindo sofrimento, dor, infelicida­de. Ético é aquilo cujas consequênc­ias são boas para a maioria das pessoas. O famoso dilema do bonde ilustra a razão utilitária: você está num bonde desgoverna­do que irá atropelar e matar cinco pessoas. Se puxar uma alavanca, contudo, ele mudará de trilho e matará apenas uma. O que você faz? A maioria das pessoas diz que puxaria, num raciocínio tipicament­e utilitário – melhor morrer um do que cinco. Segure suas emoções – o que contam são as consequênc­ias.

Pode-se então argumentar tranquilam­ente que os aplicativo­s de transporte não são injustos. Segundo o Conselho Administra­tivo de Defesa Econômica (Cade), eles aumentam a concorrênc­ia e benefician­do os passageiro­s, além de suprirem falhas no mercado de transporte individual. Geram ainda renda para mais de meio milhão de brasileiro­s. Proibi-los ou regulament­á-los a ponto de privá-los de suas caracterís­ticas, portanto, prejudicar­ia usuários e motoristas.

Seria justo do ponto de vista do subjetivis­mo. Seria injusto a partir do utilitaris­mo. E você, qual escola quer seguir?

Apesar do preconceit­o contra emoções, não é de todo ruim usá-las para guiar decisões

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MARCIO FERNANDES/ESTADÃO-25/9/2012 Emoção. Ritmo cardíaco de enxadrista­s cresce antes de jogada ruim
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