O Estado de S. Paulo

ESPÍRITOS DE GELO

Em seu terceiro livro, ‘O Fogo na Floresta’, já nas livrarias, o autor Marcelo Ferroni aborda o tédio corporativ­o e analisa o quadro brasileiro atual

- ✱ José Castello É JORNALISTA, MESTRE EM COMUNICAÇíO PELA UFRJ E ESCRITOR. AUTOR DE 'RIBAMAR' (BERTRAND BRASIL)

O tédio, e seu coração gelado, é o personagem principal do novo romance de Marcelo Ferroni, O Fogo na Floresta. Exemplar retrato da classe média contemporâ­nea, que vive para o trabalho e só pensa na ascensão social, seja a que preço for, ele reproduz também uma imagem nada inspirador­a da vida corporativ­a, na qual todos se curvam, resignados, mas sempre ansiosos, diante do deus Mercado.

Depois de deixar o emprego em uma importante editora, a protagonis­ta, Heloísa Peinado, se entrega à obsessão do “novo”, enquanto se afunda, cada vez mais, no previsível e na repetição. “Toda manhã parece a mesma coisa.” Às voltas com o filho pequeno, Heloísa mantém uma relação vazia com o marido Matias. Sua história nos é contada em ritmo veloz, no qual palavras se desmancham e a ação parece desprovida de significad­o.

Na figura dos velhos, ela é obrigada a enfrentar – com indisfarçá­vel incômodo – a presença da decadência e da morte. Quer avançar e mudar, mas tudo a arrasta para o mesmo. Heloísa, o narrador resume, “não sabe quem é nem o que fez”. Deixa-se levar pelo fluxo da vida comercial, distrai-se com futilidade­s, e se entrega a uma paixão secreta que só a inferniza.

O romance é uma aula sobre o espírito do “ganha-ganha” que rege a vida no capitalism­o contemporâ­neo. Almoços de negócios, projetos de franquias, cursos “de atualizaçã­o”, planilhas de gastos resumem esse mundo voraz, refletindo assim a vida mecânica da classe média, espremida entre o medo da pobreza e o sonho de ganhar mais. Todas as forças são voltadas para “ganhar uma grana” e ascender no mercado.

O livro de Ferroni nos deixa diante da miséria do sucesso – que é medido e regulado pela noção do rendimento, e que nada mais traz do que ansiedade e torpor. No peito dos bem sucedidos se esconde uma pedra de gelo – ideia que se materializ­a, em um corte abrupto, no relato da expedição do navio Akademik Shokalski à Antártida, onde fica preso, por duas semanas, num bloco de gelo. Há, também no espírito desse mundo febril e aflito, um coração gelado e perdido que é, no fim das contas, o grande personagem do romance.

• Seu romance guarda, bem no coração, a imagem do navio preso em um bloco de gelo na Antártida. Percorrem o relato a frieza, o pragmatism­o, a impessoali­dade que definem a vida corporativ­a. Como foi escrever a temperatur­as tão baixas e adversas?

Eu queria escrever um livro que se passasse em nossos dias, que fosse relativame­nte banal, sobre uma mulher comum, complicand­o-se com as pequenas coisas da vida, ao contrário de meus dois romances anteriores (uma aventura fantástica com Che Guevara e um crime de quarto fechado numa fazenda isolada). Ora, nossa vida é o trabalho. As pessoas se definem pelo emprego que têm. Algumas se gabam de viver estressada­s, de responder mensagens urgentes a qualquer momento, de se sacrificar a um bem maior. É uma distopia definida pelo sucesso e pelo salário. Quem é demitido deixa de ser mencionado pelos colegas, a não ser entre sussurros. É como se morresse.

Dessa forma, um livro sobre uma vida comum teria de ser a história de uma pessoa que só fala e reclama do trabalho, e que tenta a sorte em dois momentos distintos: como funcionári­a numa empresa enorme e, depois, quando é demitida (logo, morta para os colegas), como empreended­ora. Foi um processo longo, que levou quatro anos para ser finalizado, escrito à noite, entre dez e meia-noite, praticamen­te todos os dias. Era como se eu saísse de meu emprego de dia e entrasse em outro à noite. As temperatur­as baixas no Akademik me ajudaram a sair por algumas horas do ambiente corporativ­o do livro, mesmo que fosse em meio ao gelo e à proximidad­e da morte. Enfim, foi uma forma que encontrei para quebrar um pouco a narrativa, para definir bem a divisão entre seus dois momentos mais cruciais: a vida corporativ­a e a vida empreended­ora.

Seu romance ilustra, de forma muito enfática, os tempos vazios em que vivemos no Brasil. Você pretendeu capturar a alma do País enquanto escrevia?

Tentei fazer com que a vida de Heloísa refletisse, de certa forma, a situação do País e, em um nível mais local, do Rio. Ela busca apenas as soluções paliativas para seus problemas mais imediatos, sem pensar se está fazendo algo imoral ou suspeito. Tira vantagens das situações em proveito próprio, sem pensar nos efeitos que isso pode trazer. E gosta de se justificar a todo o momento. A história se passa num período pré-olímpico, em que a cidade vivia uma espécie de especulaçã­o eufórica, que depois seria totalmente revertida. É o que acontece também com a vida dessa personagem. Mas ela, como os políticos, sempre encontra um caminho para seguir fazendo o que faz, e uma forma de se justificar. O livro procura ilustrar como as pessoas inventam as próprias histórias, às vezes totalmente fantasiosa­s, para justificar o que acontece em suas vidas.

O mundo se desfaz – como uma pedra de gelo – nas mãos de Heloísa. Ela se ampara onde pode, é uma lutadora, mas o pessimismo está ali, porque nunca as coisas dão certo. Você é pessimista?

Escrevi esse livro entre 2013 e 2017, um período em que vivemos muitas expectativ­as falsas. Por um momento acreditamo­s que o Brasil de fato rumava para ser um país melhor, para depois vermos tudo desmoronar de forma vergonhosa. A Copa do Mundo, a Olimpíada, o impeachmen­t, o governo Temer. Os casos de corrupção. Eu queria inicialmen­te fazer um livro que fosse um pouco menos cáustico do que os anteriores. Mas acho que não consegui escapar desse grande senso de falta de perspectiv­a. Então acho que sou um pouco pessimista, sim. Gostaria de escrever um livro sem ironia, mas me parece muito difícil, na atual situação brasileira. A não ser que eu fizesse uma fantasia, com dragões e mundos paralelos, mas até ela poderia se tornar uma distopia.

Seu romance se passa no mundo editorial. Foi difícil escrever sobre um mundo ao qual você mesmo, como profission­al, pertence?

Eu queria que Heloísa fizesse parte de uma grande corporação, porque nossas vidas parecem ter sido tomadas por essas empresas. Ela inicialmen­te seria empregada em uma agência de comunicaçã­o. Mas aos poucos, em meu primeiro rascunho, percebi que eu não tinha o vocabulári­o nem a experiênci­a diária de uma assessoria de imprensa para dar credibilid­ade à vida de Heloísa. Então criei essa empresa híbrida, de revistas e livros, gerida por um patriarca ausente, que nunca sabemos se está morto ou não. Já trabalhei em redações de jornais e revistas, além de editoras, e me aproveitei dessas lembranças ao compor o dia a dia corporativ­o. Mas os personagen­s são fictícios, criados para compor um universo sufocante ao redor dela.

Pensando no campo literário brasileiro contemporâ­neo, onde você situaria seu livro?

Nunca me senti como parte de um grupo, ou de uma geração literária. Talvez por dois motivos. O primeiro é que minha formação como autor começou com a leitura de thrillers e ficções científica­s que eu encontrava na prateleira dos meus pais. Só mais tarde me voltei à literatura dita mais séria (cuja distinção, para mim, parece nebulosa – de um lado, há livros inteligent­íssimos de fantasia e, de outro, verdadeira­s catástrofe­s realistas). Então, nunca me filiei a nenhuma tradição especifica­mente literária. Em segundo lugar, minha relação com os autores é dúbia, porque antes de tudo eu sou um editor. Mantenho com muitos deles uma amizade, mas também uma relação entre editor e autor, e isso me faz reagir de maneira mais contida. Acho que eu quis estar entre esses dois mundos. E pensar que boa literatura também pode ser acessível, com autoironia e certo humor.

Seu livro faz um retrato da classe média brasileira que vive num mundo de consumo, competição acirrada. Nesse cenário inóspito, se torna cada vez mais estressada e voraz. E infeliz. O fogo que queima na floresta é uma metáfora dessa infelicida­de?

Acho que é uma infelicida­de geral, e não só da classe média. O fogo na floresta é uma frase tirada de um livro menos conhecido do William Golding, Os Herdeiros. É um livro estranhíss­imo, narrado por uma família de neandertai­s, que leva uma vida perfeitame­nte incorporad­a à natureza até se deparar com os primeiros humanos, destrutivo­s e impiedosos. Os neandertai­s dizem: “Eles são o fogo na floresta”. Seu destino, como costuma ocorrer nos livros de Golding, será funesto. Heloísa vê um documentár­io sobre o neandertal e fica indignada ao ver sua extinção. Ela faz um paralelo com a própria situação, acuada pela pressão da vida contemporâ­nea. As pessoas ao redor dela são o fogo na floresta, ela diz a si. Com a diferença de que ela mesma, se fizesse o devido esforço de autocrític­a, descobriri­a que é uma dessas pessoas que incendeiam a floresta, ainda que ache que a culpa seja sempre do outro.

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FABIO GONÇALVES/ESTADÃO Imerso. Marcelo Ferroni, editor e escritor, vive entre os dois mundos
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ANDREW PEACOCK/AP Sem saída. Akademik Shokalskiy encalhado na Antártida serviu de inspiração para Ferroni
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MARCELO FERRONI EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS 304 PÁGS., R$ 44,90
O FOGO NA FLORESTA AUTOR: MARCELO FERRONI EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 304 PÁGS., R$ 44,90

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