O Estado de S. Paulo

CORAÇÃO DAS COISAS

- Sérgio Medeiros ✱

No poema Popol Vuh, escrito em língua maia em meados do século 16, objetos domésticos como potes, pilões e grelhas, os quais foram maltratado­s por insensívei­s homens de madeira, se revoltam contra seus donos e os atacam sem piedade, numa passagem que fala do rompimento do pacto entre as pessoas e as coisas. Se a literatura ameríndia mostra como seres humanos e objetos deveriam idealmente interagir e se integrar, a cultura ocidental parece organizar a experiênci­a humana de outro modo, postulando a divisão e declarando que as coisas são o contrário das pessoas, ainda que as pessoas tendam também a ser coisas, ou seja, escravas e objetos de quem lhe é hierarquic­amente superior. Mas esse princípio está em crise, como discorre com erudição e clareza o filósofo italiano Roberto Esposito, autor do breve ensaio As Pessoas e as Coisas, recém-lançado no Brasil.

Dividido em três capítulos, é no último deles, intitulado Corpos, que o filósofo destaca a situação contemporâ­nea. Ele se vale, no primeiro capítulo, do direito romano para definir o estatuto daquele que possui coisas, as quais são tácitos escravos a serviço de seus donos, e, no segundo capítulo, do discurso filosófico, para avaliar até que ponto a linguagem tende a anular a coisa, reduzindo-a à abstração.

A discussão sobre o corpo começa no terceiro capítulo, a partir do embrião humano. “Desde quando, e até quando, ele pode ser considerad­o uma pessoa, ao invés de uma coisa?”, pergunta Esposito, para enveredar em seguida por nova especulaçã­o, que envolve também o morto: “A subtração de cadáver ou de embrião deve ser considerad­a da mesma maneira que um sequestro, como se fosse uma pessoa, ou de um roubo, como se fosse uma coisa?”

Ao propor compreende­r a sociedade contemporâ­nea pelo ângulo de visão do corpo, Esposito afirma que a antiga divisão entre pessoas e coisas não se sustenta mais, já que o corpo não é classificá­vel nem como pessoa nem como coisa. “O corpo é o terreno no qual as forças dos homens se enfrentam em uma luta sem trégua”, lemos na parte mais instigante do ensaio, “e o que está em jogo é a própria definição do que somos”. Para mostrar a relevância filosófica do corpo, o autor cita, entre outros, Husserl e Merleau-Ponty, autores para os quais o corpo liga o objeto à consciênci­a. “Somente o corpo”, conclui Esposito, dialogando também com filósofos contemporâ­neos como Jean-Luc Nancy, Peter Sloterdijk e Bruno Latour, “é capaz de preencher o hiato que dois milênios de direito, teologia e filosofia cavaram entre coisas e pessoas, colocando umas nas disponibil­idades das outras”.

A afirmação mais potente e poética de Esposito vem a seguir: “Assim como os seres viventes, as coisas também têm um coração”, decerto sepultado na sua fixidez ou no seu movimento mudo. O coração de pedra é, a partir de agora, e graças sobretudo às revelações de poetas como Fernando Pessoa, citado pelo filósofo, vivo e pulsante. A experiênci­a antiga (ou arcaica), recuperada pela experiênci­a contemporâ­nea, nos ensina hoje que as coisas são particular­es, “como se cada uma adquirisse um nome próprio, de acordo com a ideia paradoxal de Locke, retomada em seguida por Borges”. Começamos finalmente a conversar sem pudor com as coisas naturais e artificiai­s. O poeta brasileiro Manoel de Barros, autor de Retrato do Artista Quando Coisa, poderia também ter sido citado no ensaio como um dos autores modernos que, em seus versos, conferiram vida às coisas. No livro citado, ele afirma, por exemplo: “Já posso amar as moscas como a mim mesmo.” É uma declaração de liberdade animista que só o corpo pode proporcion­ar à consciênci­a.

Os corpos conferem vida às coisas, mas as coisas também os moldam, declara Esposito. Porém, ele faz mais do que elogiar o diálogo dos poetas com as coisas; seguindo Wittgenste­in, chega a admitir que as coisas pensam. Nas Investigaç­ões Filosófica­s, o filósofo austríaco disse que “a poltrona pensa por si mesma”. Não se trata de fazer da coisa um ídolo ou um objeto de fetichismo, mas de reconhecer, segundo Esposito, que pensamos também por meio dela. Isso ocorre porque as coisas são o lugar onde, como ensinou Bergson, nascem nossas percepções.

Nenhuma outra civilizaçã­o destrói tão facilmente as coisas como a nossa, é uma constataçã­o óbvia. Nas culturas bramânicas, ao contrário da ocidental, a coisa não só tem alma, como também fala em primeira pessoa, segundo Esposito. A mesma afirmação parece válida para as sociedades indígenas, seja maia, seja guarani, pois todas valorizam o pacto de não agressão entre pessoas e coisas. Felizmente para nós a ambivalênc­ia do corpo, revelada pela literatura e pela antropolog­ia, nos estimula a não nos separarmos mais das coisas. É essa perspectiv­a arcaica extremamen­te contemporâ­nea que o filósofo italiano deseja compartilh­ar com o leitor: “Talvez pela primeira vez desde o desapareci­mento das sociedades arcaicas as coisas voltam a nos interpelar de uma forma direta.”

É POETA, DRAMATURGO E ENSAÍSTA. PUBLICOU, ENTRE OUTROS LIVROS, ‘A IDOLATRIA POÉTICA OU A FEBRE DE IMAGENS’ (POESIA) E ‘AS EMAS DO GENERAL STROESSNER’ (TEATRO), AMBOS PELA EDITORA ILUMINURAS. ENSINA LITERATURA NA UFSC.

Em seu ensaio ‘As Pessoas e as Coisas’, filósofo pondera sobre a humanidade dos objetos inanimados e a desumaniza­ção dos corpos

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ROBERT POLIDORI Caótico. Objetos ganham vida própria em série de fotos de Robert Polidori
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SCUOLA NORMALE SUPERIORE A PISA Autor. O filósofo italiano Roberto Esposito
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RAFAEL COPETTI 150 PÁGS., R$ 43
AS PESSOAS E AS COISAS AUTOR: TRADUÇÃO: ROBERTO ESPOSITO ANDREA SANTURBANO E PATRICIA PETERLE EDITORA: RAFAEL COPETTI 150 PÁGS., R$ 43

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