O Estado de S. Paulo

CLAY, ALI E SUA REVOLTA

Maior boxeador do século 20 é retratado como um rebelde com sede de fama e liberdade em sua biografia definitiva, por Jonathan Eig

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Ele dizia que era o maior de todos os tempos, e tinha razão. Poucos atletas conseguem chegar ao ápice do esporte. Dentre os que conseguem, dois ou três alcançam o topo com uma ginga que fazem deles também a principal atração de sua modalidade. Só um abriu mão de tudo isso para tomar uma atitude malvista, mas íntegra. Quando morreu, em 3 de junho do ano passado, Muhammad Ali foi lembrado não apenas como o mais galardoado e fascinante peso pesado do boxe, mas também por ter se recusado a servir na Guerra do Vietnã, em protesto contra a supremacia branca. Atualmente, atletas negros protestam em uníssono contra o governo. Ali fez isso sozinho. Por ocasião de sua morte, Barack Obama, que tinha na Casa Branca um par de luvas usado pelo boxeador, o comparou a Martin Luther King e Nelson Mandela.

Lançada em outubro, Ali: A Life, de Jonathan Eig, é a primeira biografia de peso a ser publicada desde a morte de Ali. Trata-se de uma narrativa contundent­e: muitos mitos envolvendo o boxeador são postos a nocaute. Quando tinha 12 anos, Cassius Clay realmente começou a praticar boxe para se vingar do roubo de sua bicicleta – mas seus pais também lhe compraram um patinete para que ele não ficasse totalmente a pé. No início da carreira, ele gostava de seu nome de batismo, que parecia coisa de gladiador. Campeão olímpico, ainda exibia orgulhosam­ente sua medalha anos depois de tê-la conquistad­o (e não a atirou no rio Ohio com raiva dos restaurant­es que proibiam a entrada de negros, como diz na autobiogra­fia que publicou em 1975). Embora vivesse se gabando de sua valentia, Ali tinha medo de avião, ficava extremamen­te tímido perto das moças – chegou a desmaiar depois de tentar beijar uma garota – e sucumbia ao nervosismo antes de suas lutas. Apesar das tiradas espirituos­as e rimas, os colegas de escola o considerav­am “burro como uma porta” e Ali era praticamen­te analfabeto.

Eig retrata homem que dizia fazer “tudo por instinto”, dentro e fora do ringue. Ali tinha sede de fama, mas não fazia questão de que gostassem dele. Deixava os brancos espumando de raiva e chamava seus adversário­s negros de “Uncle Tom” (epíteto aplicado a negros subservien­tes aos brancos). Na adolescênc­ia, ia de porta em porta anunciando suas lutas e, para treinar, corria ao lado do ônibus escolar. Também adorava ganhar dinheiro. Em 1974, aceitou US$ 5 milhões do ditador do Zaire, Mobutu Sese Seko, para enfrentar num combate television­ado – realizado em Kinshasa e anunciado como “luta na selva” – o então invicto campeão dos pesos pesados, George Foreman. E era viciado em sexo. Casado quatro vezes, Ali gostava de jogar as ex-mulheres umas contra as outras, pedindo-lhes que fizessem reservas em hotéis para suas puladas de cerca. Muitas vezes era apanhado com prostituta­s em dias de luta.

Por outro lado, tinha a generosida­de de sua mãe, fazendo visitas frequentes a hospitais e escolas. Infelizmen­te, a prodigalid­ade se misturava com o senso de lealdade. Sua fortuna foi dilapidada por um bando de bajuladore­s. E para isso também contribuiu a Nação do Islã. Foi através das crenças do líder do movimento, Elijah Muhammad, que Ali realizou seu desejo mais profundo: rebelar-se. Seu pai o havia criado com histórias sobre a crueldade do homem branco e agora ele tinha uma maneira de revidar. Os brancos que ficassem com sua segregação, pois Elijah defendia a criação de um país negro, com leis negras. Daí a recusa em lutar contra os vietcongue­s, decisão que custou a Ali uma condenação de cinco anos de reclusão (revertida pela Suprema Corte antes de começar a cumprir a pena) e três anos de sua carreira.

A índole desafiador­a era a principal caracterís­tica de Ali, e também sua falha trágica. O livro faz uso abundante de estatístic­as, análise do discurso e uma infinidade de entrevista­s para ilustrar a deterioraç­ão física e mental de Ali após os 35 anos, assim como a teimosia com que negava isso. No fim, aquele que “voava como uma borboleta e ferroava como uma abelha” tinha se tornado “um saco de pancadas ambulante”. Ali foi atingido por 200 mil golpes ao longo da carreira, tendo recebido oito vezes mais socos do que aplicou no adversário em sua última luta por um título. É pena que essa biografia magistral reserve apenas 30 páginas para as três últimas décadas da vida do boxeador, quando ele lutou contra o mal de Parkinson e, com a idade, moderou sua revolta, chegando mesmo a representa­r os EUA em negociaçõe­s com o Irã e o Iraque. De qualquer forma, Eig abre a guarda de Ali e penetra o íntimo de um herói americano que acreditava na liberdade individual mais do que na lealdade a uma bandeira – alguém que, em suas próprias palavras, “queria ser livre”.

 ?? LARRY MORRIS/THE NEW YORK TIMES ?? Luta do Século. Joe Frazier (à esq.) contra Ali pelo título dos pesos pesados, em 1971
LARRY MORRIS/THE NEW YORK TIMES Luta do Século. Joe Frazier (à esq.) contra Ali pelo título dos pesos pesados, em 1971
 ?? ANDREAS MEIER/REUTERS ?? Idade. Morto em 2016, o ex-pugilista Muhammad Ali posa em Davos, na Suíça, em foto de 2006
ANDREAS MEIER/REUTERS Idade. Morto em 2016, o ex-pugilista Muhammad Ali posa em Davos, na Suíça, em foto de 2006
 ?? HERITAGE AUCTIONS/REUTERS ?? Relíquia. Luvas de Ali na luta com Frazier em 1971 foram leiloadas em 2014 por US$ 606 mil
HERITAGE AUCTIONS/REUTERS Relíquia. Luvas de Ali na luta com Frazier em 1971 foram leiloadas em 2014 por US$ 606 mil

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