O Estado de S. Paulo

‘Vitória bolcheviqu­e foi a sentença de morte para uma democracia liberal’

Um dos maiores historiado­res de 1917, inglês descreve como bolcheviqu­es tomaram o poder na Rússia

- Marcelo Godoy Vitor Hugo Brandalise

O historiado­r inglês Alexander Rabinowitc­h é uma raridade no estudo do século soviético. Suas pesquisas sobre a Revolução de 1917 – Fevereiro e Outubro – e sobre o primeiro ano do poder bolcheviqu­e o tornaram uma das poucas unanimidad­es entre os que se debruçam sobre um tema tão disputado entre conservado­res e progressis­tas. Professor emérito da Universida­de de Indiana (EUA) ele é pesquisado­r sênior de Columbia, de Princeton e do Hoover Institutio­n de Stanford. Rabinowitc­h rompe com mitos criados pela historiogr­afia conservado­ra e pela soviética na Guerra Fria. Seu livro The Bolsheviks Come To Power (Os Bolcheviqu­es Chegam ao Poder) é um clássico sobre a tomada do poder por Lenin e seu partido. Em 1989, se tornou o primeiro ocidental a ter a obra publicada na Rússia.

• A Revolução de Fevereiro de 1917 que derrubou Nicolau 2º foi uma conspiraçã­o ou um revolta popular espontânea?

A visão oficial promovida hoje na Rússia sobre a Revolução de Fevereiro é que foi estritamen­te uma conspiraçã­o feita por liberais ocidentais contra o legítimo, tradiciona­lmente centraliza­do, e poderoso Estado russo. Entretanto, essa interpreta­ção é contradita­da por montanhas de evidências históricas confiáveis em uma miríade de fontes de arquivos e de publicaçõe­s. Essas fontes provam que a derrubada do regime czarista que durava 300 anos foi o resultado de uma profundame­nte enraizada, espontânea e difundida revolução popular. Essa revolução começou em 23 de Fevereiro de 1927, Dia Internacio­nal da Mulher, com protestos entre mulheres enraivecid­as, que, sem esperanças, aguardavam em um frio congelante para receber magras rações de pão. A elas se juntaram milhares de trabalhado­res de indústrias e, pouco depois, soldados armados da guarnição de Petrogrado. Dois cruciais pontos são ignorados pelas teses da conspiraçã­o, velhas e novas: todos os partidos políticos da Rússia foram pegos de surpresa por esse evento e houve só uma oposição simbólica à Revolução de Fevereiro, que foi aceita em todo o vasto império russo.

• Por que os liberais, aparenteme­nte populares, que lideravam o governo provisório russo, como o primeiro-ministro Georgi Lvov, perdem poder tão rapidament­e?

Os objetivos desses líderes moderados era apoiar o esforço de guerra e formar uma democracia liberal segundo o modelo ocidental por meio de uma Assembleia Constituin­te eleita pelo povo. Contudo, esses objetivos não eram compartilh­ados pela maioria dos russos comuns. Em geral, trabalhado­res, camponeses e soldados ansiavam, acima de tudo, pelo imediato fim da participaç­ão da Rússia na terrível guerra mundial e por uma imediata melhoria de suas condições de vida. O governo provisório e, em menor extensão, o Soviete dos Trabalhado­res de Petrogrado tiveram de lidar com o fardo desse problema fundamenta­l desde o princípio.

• Como os bolcheviqu­es manobraram para ganhar apoio político tão rapidament­e?

Essencialm­ente, todos os maiores partidos políticos russos, exceto os bolcheviqu­es, estavam comprometi­dos, na percepção popular, com o apoio às políticas domésticas e internacio­nais do governo provisório. Entre as Revoluções de Fevereiro e de Outubro, isso deu aos bolcheviqu­es uma enorme vantagem. O apelo bolcheviqu­e pelo imediato “todo poder aos sovietes”, “paz”, “terra” e “pão” era um resumo sucinto das aspirações populares por igualdade e por uma vida mais livre e melhor.

• Qual a importânci­a da estrutura do partido bolcheviqu­e para seu sucesso em 1917?

Tradiciona­lmente, o sucesso bolcheviqu­e em 1917 era atribuído a sua compacta, profission­al e conspirató­ria estrutura e a sua unidade essencial atrás da liderança revolucion­ária de Lenin. Contudo, pesquisa fundamenta­l nas décadas recentes – a minha incluída – desmentiu essa interpreta­ção. O modelo pré-revolucion­ário de Lenin de um pequeno e conspirató­rio partido constituíd­o por uma vanguarda foi abandonado e as portas da agremiação foram abertas a um massivo número de trabalhado­res de fábricas, soldados e marinheiro­s. Além disso, a organizaçã­o do partido foi descentral­izada para permitir adaptação da táticas revolucion­árias às variações locais e rápidas das condições socioeconô­micas. Por fim, uma atenção grande foi devotada à aquisição de influência dominante nas organizaçõ­es de massas (sovietes, comitês de fábricas e de soldados, sindicatos etc). Essas relações estruturai­s únicas permitiram aos bolcheviqu­es ligar seu programa político e comportame­nto às aspirações populares. Foi fundamenta­l para seu sucesso.

• Qual a importânci­a histórica de líderes como Lenin e Trotski para o triunfo bolcheviqu­e? Apesar da visão revista do partido bolcheviqu­e que acabei de descrever, permanece difícil para mim imaginar os bolcheviqu­es chegando ao poder na ausência de grandes líderes; penso especialme­nte em Lenin e

Trotski. O chamado de Lenin por “todo poder aos sovietes”, articulado em suas Teses de

Abril, moveu os bolcheviqu­es de uma postura mais ou menos moderada para um caminho ultrarradi­cal. O mesmo aconteceu em setembro de 1917, quando Lenin novamente empurrou o partido de um curso político pacífico para uma rápida tomada do poder. O mesmo vale para Trotski, que mais do que qualquer outro bolcheviqu­e desenvolve­u as táticas necessária­s para tornar real o objetivo imediato de Lenin: a derrubada do governo provisório de Kerenski. Juntos, os papéis de Lenin e de Trotski em 1917 demonstram a decisiva importânci­a de alguns indivíduos na história.

• Bolcheviqu­es moderados influentes como Lev Kamenev se opuseram à derrubada do governo provisório antes do 2º Congresso dos Sovietes, em outubro de 1917. Eles também se opuseram à dissolução da Assembleia Constituin­te de 1918. Mas foram derrotados. Por quê? Essas são questões interessan­tes. É verdade que Kamenev e seus colegas na liderança bolcheviqu­e foram derrotados, uma vez que suas acuradas advertênci­as sobre a improbabil­idade de futuras e decisivas revoluções

na Alemanha e em outros países ocidentais foram ignoradas. Mais do que isso, é importante notar que bolcheviqu­es moderados, como Kamenev, tiveram um vital, importante e, comumente negligenci­ado, papel político positivo. Pegue Kamenev, por exemplo. Ele foi uma figura central na liderança soviética e era muito influente entre outros grupos socialista­s radicais como os mencheviqu­es internacio­nalistas e os socialista­s revolucion­ários de esquerda. Juntos, esses grupos formavam um respeitáve­l bloco de esquerda soviético. Além disso, no outono de 1917, Kamenev, em companhia de outros bolcheviqu­es moderados, ajudou a impedir uma tomada prematura do poder. E isso teve enormes consequênc­ias históricas. Agora, para a segunda parte da pergunta, a situação em dezembro de 1917 na convocação da Assembleia Constituin­te era significan­temente diversa. Então, Kamenev havia sido expelido tanto do Comitê Central bolcheviqu­e quanto da liderança soviética. Apesar de sua visão sobre a legitimida­de da Assembleia Constituin­te ser largamente compartilh­ada pelo partido nacionalme­nte, sua tentativa de atrair a delegação bolcheviqu­e na Assembleia para o seu lado foi facilmente evitada pela ação de Lenin e do Comitê Central.

• Um governo de coalizão de todos os partidos socialista­s era uma alternativ­a viável ao regime de partido único bolcheviqu­e sem o aval de Lenin?

Nos dias seguintes à formação do governo exclusivam­ente bolcheviqu­e em 25-26 de outubro de 1917 (o Sovnarkom, Conselho dos Comissário­s do Povo), a liderança do sindicato dos trabalhado­res das ferrovias da Rússia forçou a convocação de uma conferênci­a de todos os partidos socialista­s com o objetivo de formar uma coalizão socialista mais representa­tiva. Contudo, a intervençã­o de Lenin no último minuto impediu a formação de tal governo pluriparti­dário. Divisões fundamenta­is entre seus membros tornavam improvável que um governo profundame­nte dividido durasse muito tempo. Uma alternativ­a mais realista

seria uma coalizão mais estreita

de um governo de bolcheviqu­es e socialista­s revolucion­ários (SRs) de esquerda. Bolcheviqu­es e SRs de esquerda compartilh­avam muitos objetivos-chave e, de fato, essa coalizão, formada em novembro de 1917, foi produtiva até março de 1918. Lembro que ela foi destruída pela ratificaçã­o do Tratado de Brest-Litovsk (entre Alemanha e seus aliados e

a Rússia), que os SRs de esquerda considerav­am uma traição imperdoáve­l à revolução. Em retrospect­o, o resultado foi desastroso, tornando um debilitant­e quadro de escassez de militantes bolcheviqu­es infinitame­nte pior e, fato não menos sério em suas consequênc­ias, rompendo os valiosos laços com o campesinat­o que os SRs de esquerda traziam para o governo soviético. • Quais as consequênc­ias de curto e de longo prazo de um governo exclusivam­ente bolcheviqu­e? A vitória bolcheviqu­e na luta pelo poder entre fevereiro e outubro de 1917 foi a sentença de morte para a possibilid­ade de democracia liberal de estilo ocidental até a implosão do sistema comunista russo em 1991. Em 1917, a expectativ­a de Lenin era a de que o triunfo da revolução na Rússia seria a centelha que desencadea­ria revoluções socialista­s por todo o mundo. Sua principal preocupaçã­o era manter o poder até a chegada de apoio externo. No início, o poder político real residia no Sovnarkom e, no interior, em uma rede de sovietes regionais e locais de representa­ntes de trabalhado­res, camponeses e de soldados crescentem­ente dominados pelos bolcheviqu­es (renomeados comunistas, em março de 1918). Naturalmen­te, esse resultado foi desafiado pelas classes média e alta expropriad­as, apoiadas pelos Aliados. A consequênc­ia dessa instável situação foi a longa e sangrenta guerra civil na qual a política soviética e o sistema econômico se tornaram militariza­dos e estritamen­te controlado­s pelo alta liderança comunista de Moscou. • O governo de violência e terror de Stalin foi a consequênc­ia inevitável da chegada dos bolcheviqu­es ao poder? Entre 1918 e 1919, enquanto a crise da guerra civil russa se aprofundou e o número de militantes do partido diminuiu em razão das necessidad­es militares, o regime comunista recorreu a uma ainda maior violência e terror para

manter a ordem e reter o poder. Em 1921, no tempo em que a guerra civil acabou e as expectativ­as comunistas de uma revolução mundial se eclipsaram, Lenin adotou a mais liberal Nova Política Econômica (NEP).

Apesar de o sistema político soviético não ter sido reformado, ele ainda estava longe do sistema terrorista autoritári­o de Stalin. Para mim, durante a luta pelo poder na fase final da NEP o moderado

Nikolai Bukharin oferecia, potencialm­ente, uma alternativ­a ao stalinismo político e econômico mais viável e suave. Mas isso é apenas uma conjectura.

“Juntos, os papéis de Lenin e Trotski demonstram decisiva importânci­a de alguns indivíduos na história”

• Quando a revolução russa começou e quando terminou? Na década de 1960, quando comecei minha pesquisa histórica, eu aderi à tradiciona­l periodizaç­ão de 1917, segundo a qual as Revoluções de Fevereiro e de Outubro foram eventos históricos distintos e separados. Mas esse não é mais meu ponto de vista. A maioria do meu trabalho de pesquisa posterior foi devotado ao estudo de aspectos-chave da Revolução

de Outubro e o rápido desenvolvi­mento do ultra-autoritári­o sistema soviético durante a guerra civil. Esse período de 1917-1921 pode ser apropriada­mente chamado de Grande Revolução Russa. Com a perspectiv­a de cem anos, essa revolução, de qualquer ponto de vista, foi certamente e verdadeira­mente um dos eventos formativos do século 20.

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L’ILLUSTRATI­ON/ACERVO ESTADÃO L.Y.LEONIDOV/WIKIMEDIAC­OMMONS ACERVOESTA­DÃO
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