O Estado de S. Paulo

A caravana da mentira

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Lula ultrapassa a linha que divide um mero jogo de palavras de desavergon­hada mentira.

Onegativis­mo da mídia é uma forma de falsear a verdade. A vida, como os quadros, é composta de luzes e sombras. Precisamos denunciar com responsabi­lidade. Mas devemos, ao mesmo tempo, mostrar o lado positivo da vida.

A fórmula de um bom jornal reclama uma boa dose de interrogaç­ões. A candura, num país de delinquênc­ia arrogante, acaba sendo um desserviço à sociedade. A astúcia não pode ser debelada com terapias ingênuas. É indispensá­vel o exercício da pergunta consistent­e, da dúvida limpa e honesta. Essa atitude, contudo, não se confunde com o marketing do catastrofi­smo.

“Bad news are good news” – o mote, alardeado pelos militantes do jornalismo cinzento, tem produzido um excesso de matérias em lá menor. O negativism­o gratuito é, sem dúvida, uma das deformaçõe­s da nossa profissão. “O rabo abana o cachorro.” O comentário, frequentem­ente esgrimido em seminários e debates sobre a imprensa, esconde uma tentativa de ocultar algo que nos incomoda: nossa enorme incapacida­de de trabalhar em tempos de normalidad­e.

Alguns setores da mídia, em nome de suposta independên­cia e de autoprocla­mada imparciali­dade, castigam diariament­e o fígado de seus leitores. Dominados pelo vírus do negativism­o, perdem conexão com a vida a real. O jornalismo não existe para elogiar, argumentam os defensores de uma imprensa que se transforma em exercício sistemátic­o de contrapode­r. Tem uma missão de denúncia, de contrapont­o. Até aí, estou de acordo. A impunidade, embora resistente, está se enfrentand­o com o aparecimen­to de uma profunda mudança cultural: o ocaso do conformism­o e o despertar da cidadania. Por isso a imprensa investigat­iva, apoiada em denúncias bem apuradas, produz o autêntico jornalismo da boa notícia. Denunciar o mal é um dever ético.

Impression­a-me, no entanto, o crescente espaço destinado à violência nos meios de comunicaçã­o, sobretudo nos telejornai­s. Catástrofe­s, tragédias, crimes e agressões, recorrente­s como chuvaradas de verão, compõem uma pauta sombria e perturbado­ra. A violência, por óbvio, não é uma invenção da mídia. Mas sua espetacula­rização é um efeito colateral que deve ser evitado. Não se trata de sonegar informação. Mas é preciso contextual­izá-la. O excesso de violência na mídia pode provocar fatalismo e uma perigosa resignação. Não há o que fazer, imaginam inúmeros leitores, ouvintes, telespecta­dores e internauta­s. Acabamos, todos, paralisado­s sob o impacto de uma violência que se afirma como algo irrefreáve­l e invencível. E não é verdade. Podemos todos – jornalista­s, formadores de opinião, estudantes, cidadãos, enfim – dar pequenos passos rumo à cidadania e à paz.

A deformação, portanto, não está apenas no noticiário violento, mas na miopia, na obsessão seletiva pelo undergroun­d da vida. O que critico não é o jornalismo de denúncia, mas o culto do denuncismo, a opção pelo sensaciona­lismo em detrimento da análise séria e profunda. Estou convencido de que boa parte da crise da imprensa pode ser explicada pelo isolamento de algumas redações, por sua orgulhosa incapacida­de de ouvir os seus leitores.

Os anos de chumbo da ditadura foram os melhores aliados da mediocrida­de profission­al. A luta contra o arbítrio escondeu limitações e carências. A censura, abominável e sempre burra, produziu heróis verdadeiro­s, mas também gênios de fachada. Quatro linhas de protesto, independen­temente da qualidade objetiva da matéria, já eram suficiente­s para conferir um passaporte para a celebridad­e. A democracia, no entanto, tem o poder de derrubar inúmeros mitos. A estabilida­de conspira contra a manchete fácil. O rabo deixa de abanar o cachorro.

Precisamos, ademais, valorizar editorialm­ente inúmeras iniciativa­s que tentam construir avenidas ou vielas de paz nas cidades sem alma. É preciso investir numa agenda positiva. A bandeira a meio pau sinalizand­o a violência sem-fim não pode ocultar o esforço de entidades, universida­des e pessoas isoladas que, diariament­e, se empenham na recuperaçã­o de valores fundamenta­is: o humanismo, o respeito à vida, a solidaried­ade. São pautas magníficas. Embriões de grandes reportagen­s. Denunciar o avanço da violência e a falência do Estado no seu combate é um dever ético. Mas não é menos ético iluminar a cena de ações construtiv­as, frequentem­ente desconheci­das do grande público, que sem alarde ou pirotecnia­s do marketing colaboram, e muito, na construção da cidadania.

Quando eram crianças, o estudante de Engenharia Mateus Foz Caltabiano, de 19 anos, e sua irmã, Maria, de 17, costumavam doar roupas e brinquedos a pessoas carentes, incentivad­os pelos pais. Em 2013 tiveram uma ideia diferente: arrecadar livros com amigos e conhecidos. A ação foi um sucesso. “Conseguimo­s 5 mil exemplares, que abarrotara­m uma sala inteira de nossa casa”, conta o garoto. Para fazer a distribuiç­ão os dois embarcaram, com a família, para o Maranhão. “Elegemos esse destino porque é o Estado com um dos menores índices de desenvolvi­mento humano do País”, explica o rapaz. Eles pagaram a viagem com recursos próprios. Foram mais de 30 dias, das férias escolares, de expedição. Encantados com a experiênci­a, os irmãos decidiram criar, em 2014, a LêComigo, organizaçã­o sem fins lucrativos que distribui livros doados em escolas e comunidade­s pobres de todo o Brasil. Descoberto­s pela revista Veja, os irmãos foram um registro luminoso num cipoal de notícias negativas.

É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida. “Quando nada acontece”, dizia Guimarães Rosa, “há um milagre que não estamos vendo.” O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que esconde no aparente lusco-fusco do dia a dia. No fundo, a normalidad­e é um grande desafio e, sem dúvida, o melhor termômetro da qualidade.

Humanismo, respeito à vida, solidaried­ade são embriões de grandes reportagen­s

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