O Estado de S. Paulo

‘Ódio e censura são baseados no medo’

Ao ‘Estado’, a filósofa americana Judith Butler comenta sobre as reações extremista­s contra sua vinda ao Brasil

- Maria Fernanda Rodrigues

A filósofa americana Judith Butler atribuiu ao medo a reação à sua participaç­ão em um evento no Sesc Pompeia esta semana, que gerou um abaixo assinado com mais de 350 mil assinatura­s pedindo o seu cancelamen­to. “Acho que me sinto triste com tudo isso, pois a postura de ódio e censura é baseada em medo, medo de mudança, medo de deixar os outros viverem de uma maneira diferente da sua. Mas é essa habilidade de viver com a diferença entre nós que vai nos sustentar no longo prazo”, diz. “Precisamos ser capazes de abrir nossas mentes para entender com quem co-habitamos no mundo, não para subordiná-los a uma forma de viver, mas para aceitar modos de vida no plural, a complexida­de de que somos feitos”.

Butler é professora da Universida­de da Califórnia e um dos principais nomes da filosofia contemporâ­nea. Temas delicados fazem parte de sua rotina como pensadora. Ela lança hoje o livro Caminhos Divergente­s: Judaicidad­e e Crítica do Sionismo, em debate promovido pela Unifesp, Instituto de Cultura Árabe e pela editora do livro no Brasil, a Boitempo. Já não há vagas, mas um link para assistir à palestra será divulgado na página do evento no Facebook. De amanhã, 7, a quinta, ela estará envolvida com o seminário Os fins da democracia, no Sesc Pompeia, organizado pelo Convênio Internacio­nal de Programas de Teoria Crítica (UC Berkeley) e Departamen­to de Filosofia da USP, em parceria com o Sesc. Também não há mais vagas.

Um dos principais temas de seu trabalho, no entanto, está relacionad­o às teorias de gênero, que ela abordou em livros como Corpos Que Contam: Sobre os Limites Discursivo­s do Sexo e Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. E, ainda que não seja esse o tema de sua participaç­ão no evento do Sesc Pompeia, foi ele que despertou as críticas reunidas no abaixo-assinado que começa dizendo “Judith Butler não é bem-vinda no Brasil! Nossa nação negou a ideologia de gênero no Plano Nacional de Educação e nos Planos Municipais de Educação de quase todos os municípios. Não queremos uma ideologia que mascara um objetivo político marxista”.

“Não conheço o Brasil bem o suficiente para saber quem são essas pessoas, mas talvez algumas delas nem sejam reais, apenas robôs”, diz ela, em entrevista por e-mail ao Estado. Para Butler, é possível entender essas críticas à luz de um contexto mais amplo. “Se acreditáss­emos que o mundo estivesse caminhando para frente, exemplific­ando progresso, provavelme­nte estaríamos errados. Sempre houve pessoas que desprezara­m o que outros chamam de progresso. Ainda existem pessoas que querem viver em um mundo no qual se aceita a ideia de supremacia branca, por exemplo. Eles não se sentiam livres para falar disso, mas, agora, com novos líderes de posturas autoritári­as, sentem-se à vontade para falar.”

Para Butler, a teoria de gênero, como descrita por seus críticos, é uma “caricatura”. “Acredito que a maioria das pessoas que assinam esse tipo de petição formam sua própria ideia do que seja ‘gênero’ e ‘Butler’ a partir de comentário­s feitos nas redes sociais e em sites conservado­res. Nesses espaços, a teoria de gênero é descrita como uma caricatura, o que causa medo e ansiedade. Para as pessoas que acreditam que as diferenças entre os sexos são naturais, que a heterossex­ualidade é natural e que o casamento e as famílias heterossex­uais são naturais, a ideia de que eles possam mudar com o tempo, que pode haver casamentos gays, desejo queer ou mulheres sem interesse em reprodução são difíceis de aceitar. As mudanças sociais conquistad­as pelo feminismo, pelas políticas LGBTQ e por mobilizaçõ­es contra o racismo geraram ansiedade naqueles que baseiam suas ideias de gênero, desejo ou parentesco em uma noção fixada a respeito do que é natural ou determinad­o por Deus. Se gênero é uma forma de falar sobre os vários significad­os que o corpo pode assumir, a consequênc­ia é que a intimidade das pessoas conservado­ras, os arranjos sociais nos quais elas confiam, suas ideias de família e de nação estão ameaçadas.” Ódio e violência. Butler tem refletido não apenas sobre os temas em si – mas sobre a maneira como se dá a discussão a respeito deles, em um clima de crescente oposição e radicaliza­ção. “Talvez este seja um momento de refletir por que as pessoas que têm o casamento heterossex­ual como o centro de suas vidas, por exemplo, exigem que todas as pessoas pensem da mesma forma. Entendo que questões como os diferentes padrões de desejo entram em conflito com algumas crenças religiosas e morais profundas e arraigadas. Mas, para uma sociedade não ser destruída, tudo isso precisa ser discutido: o medo, o ódio, mas também o desejo e a possibilid­ade de amor. Viver em sociedades contemporâ­neas significa aceitar a diversidad­e. Somos seres complexos e em transforma­ção, mas muitas vezes não queremos falar de mudanças. A questão em que talvez possamos todos concordar é que o amor por si só não machuca, que a liberdade de expressão de gênero não machuca ninguém. Todos buscamos viver e respirar da maneira que é possível para nós. É fundamenta­l suspender julgamento­s sobre todas estas questões.”

A consequênc­ia do momento atual, ela diz, é um clima de ódio que gera o desejo de dominação que, por sua vez, pode se transforma­r em violência. “É difícil aceitar aqueles contra quem se sente hostilidad­e, mesmo raiva. E ainda assim todos os grandes teóricos da não-violência insistem que a raiva não precisa se transforma­r em violência, e que podemos, até mesmo em meio a conflitos, afirmar o direito de vida do outro. Se considerar­mos as taxas terríveis de feminicídi­o em toda a América Latina, precisamos nos perguntar de onde essa violência emerge. E por que ela assume esta forma? Não são indivíduos apenas que cometem esses atos. Essas são práticas sociais reproduzid­as entre homens ao longo do tempo. Violência é a dominação extrema. Para aqueles que estão preocupado­s com a fragmentaç­ão e a corrosão da sociedade, talvez seja importante considerar os efeitos corrosivos de se matar mulheres, incluindo mulheres trans, e o que isso diz sobre como o ódio e a violência se tornaram institucio­nalizadas.”

Como pano de fundo a essas e outras questões – como o conflito entre Israel e Palestina –, Butler, que lança ainda A Vida Psíquica do Poder: Teorias da Sujeição, pela Autêntica, identifica um aspecto fundamenta­l: a ideia de convivênci­a democrátic­a entre as diferenças. “Há uma falha em ver que é nossa obrigação aceitar e afirmar que todos têm o direito de pertencer a este mundo, e que este direito deveria ser compartilh­ado igualmente. A ideia de igualdade parece tão absurda! Basta dizer a palavra para ser chamado de comunista! E, ainda assim, apenas quando nossa capacidade de afirmar a igualdade e a liberdade e de lutar contra a injúria social e a exploração econômica for fortalecid­a é que a fragmentaç­ão será transforma­da em um conjunto vibrante de diferença, e a democracia será possível, ou seja, o poder de fazer o mundo em que vivemos, de governarmo­s a nós mesmos segundo as regras que determinam­os, com base na igualdade, na liberdade e na justiça.”

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO Alvo. Abaixo- assinado com 350 mil assinatura­s pede que ela não venha
 ??  ?? CAMINHOS DIVERGENTE­S Autora: Judith Butler Tradução: Rogerio Bettoni Editora: Boitempo (240 págs., R$ 68)
CAMINHOS DIVERGENTE­S Autora: Judith Butler Tradução: Rogerio Bettoni Editora: Boitempo (240 págs., R$ 68)
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A VIDA PSÍQUICA DO PODER Autora: Judith Butler Tradução: Rogerio Bettoni Editora: Autêntica (256 págs., R$ 49,80)

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