O Estado de S. Paulo

O Congresso de 2019

- FABIO GIAMBIAGI

Por uma coincidênc­ia, o lançamento do terceiro volume dos Diários da Presidênci­a de Fernando Henrique Cardoso deu-se este ano mais ou menos concomitan­temente com o agravament­o da crise política que resultou da divulgação das famosas “gravações do Joesley”. Embora a situação atual tenha particular­idades específica­s, foi interessan­te ler o raciocínio do ex-presidente, manifestad­o em gravações feitas há quase 20 anos – o terceiro volume refere-se ao período 1999-2000 –, ao mesmo que o País acompanhav­a os novos lances do nosso intricado xadrez político.

Selecionei para o leitor algumas passagens do livro, especialme­nte ilustrativ­as por sua atualidade. A primeira é uma reflexão particular­mente interessan­te acerca das cobranças feitas a quem está no comando: “Quando o presidente entra na ação política, toda a imprensa reclama que eu estou perdendo tempo com os parlamenta­res, na barganha, o povo não gosta. Quando não entro, o governo está isolado, não tem força, e efetivamen­te o Congresso começa a dar cabeçadas (...) É uma situação que este presidenci­alismo nos traz. É muito difícil governar, porque o presidente é chefe de Estado, chefe de governo e chefe de partido. Cobram a ação do presidente e cobram a partir de ângulos diferentes” (páginas 164 e 165).

Um pequeno parêntese para registrar o comentário de que, “em 12 de maio, a Comissão de Constituiç­ão e Justiça do Senado aprovou um projeto de lei proposto pelo Senador Sérgio Machado para proibir coligações partidária­s em eleições proporcion­ais” (página 186). Em 1999! A ideia de que no Brasil as coisas se repetem dia após dia, como no filme Feitiço do Tempo, em que Bill Murray é condenado a reviver o mesmo dia indefinida­mente, chega a dar desespero.

Repare o leitor como a frase a seguir parece ter sido escrita ontem: “Vou informar aos partidos que Ibama, Incra, Funai passam a ser órgãos que não podem ser discutidos em termos políticos de forma alguma. Dirse-á por que não fiz isso antes. Porque eu não tinha força, não tinha condições para fazer. As pessoas não sabem o que é a realidade política, mas é assim (...) Repito a velha toada. É muito difícil instituir uma liderança democrátic­a. Todos querem o autoritari­smo ou o popularism­o. São as duas formas de exercício da autoridade sancionada­s positivame­nte entre nós (...) Nós estamos fazendo outra coisa; estamos afirmando uma autoridade legítima, democrátic­a, que convence ou tenta convencer, que articula, que só no limite impõe” (página 214). E ainda sobre o mesmo assunto, poucas páginas depois: “Parte dos políticos quer mais ou menos a mesma coisa, poder, e se possível algumas vantagens até mesmo de ordem material, sempre sob o pretexto, e às vezes com a convicção, de que é um mecanismo para garantir as eleições futuras. Eu não concordo, acho que dinheiro de eleição é nas eleições, e não antes delas. Enfim, esse é o pano de fundo da briga no Brasil” (página 217).

Por fim, a conclusão amarga, com certa dose de reconhecim­ento resignado. “Os aliados são sempre relativíss­imos: quando estou bem com a população, eles são fiéis; quando a população se afasta de mim, ficam tentando ir para uma posição de independên­cia crítica, esse é o jogo tradiciona­l no Brasil (...) E ninguém tem uma política alternativ­a, eles não me propõem, por exemplo, vamos mudar de qualquer maneira a taxa de juros, vamos fazer uma política industrial desse ou daquele tipo, nada concreto; são só coisas vagas” (página 276).

Relembro, em benefício do leitor, essas reflexões de Fernando Henrique Cardoso porque elas são fundamenta­is quando nos aproximamo­s do processo eleitoral de 2018. Virou moda dizer que “o eleitor quer o novo”, que estas serão eleições que marcarão uma ruptura, etc. Além disso, o ambiente internacio­nal é propício à procura de outsiders. A vitória do Brexit na Grã-Bretanha, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e episódios tão díspares como a escolha pelo eleitorado de figuras como o atual presidente filipino ou o colapso dos partidos tradiciona­is na França têm criado uma expectativ­a grande de renovação.

É convenient­e, porém, moderar um pouco as expectativ­as. Primeiro, porque após votar o eleitor vai para sua casa e deixa o governante na solidão do poder, que costuma ser cruel com quem não sabe exercê-lo. Segundo, porque especifica­mente no Brasil tudo indica que as dificuldad­es para montar uma coalizão governante em 2019 serão maiores do que as atuais: PMDB e PT provavelme­nte terão menos deputados do que hoje e partidos pequenos, como o PSOL ou o Novo, elegerão um número importante de parlamenta­res, o que significa que será preciso somar mais partidos do que hoje para alcançar os 308 votos na Câmara de Deputados necessário­s para mudar a Constituiç­ão. E, terceiro, porque, ao contrário do que acontece na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, onde mesmo com impasses o país continua sua vida normal, se o Congresso não funcionar em 2019 e não aprovar as reformas de que o País precisa, poderemos ter uma crise séria.

O presidente da República a ser eleito daqui a um ano poderá ser até, eventualme­nte, uma novidade. O Congresso, contudo, dificilmen­te o será. Se quem for eleito para comandar o País não souber lidar com o Parlamento, não é difícil imaginar o que acontecerá. Pensemos algo mais ou menos trivial: uma lei aumentando o salário mínimo em 10%, com todas as suas consequênc­ias fiscais. Nada mais simpático para ser aprovado por um Congresso em pé de guerra com o Executivo. Daí ao fim do teto de gastos será só um passo e para a pressão sobre o dólar e os preços, meio. De “pauta-bomba” em “pauta-bomba”, começaremo­s a ouvir generais dizendo que há que “fazer o que é preciso” e parlamenta­res falando em “impeachmen­t”.

Por isso, saber lidar com o Congresso será um requisitoc­have para quem for presidente da República em 2019.

Saber lidar com ele será requisito-chave para quem for eleito presidente em 2018

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