COMUNISTAS VÃO A FESTA SEM ANFITRIÃO
No centenário da revolução, russos ignoram a data, comemorada apenas por estrangeiros
Ele não diz o nome de jeito nenhum. Apresenta-se como Pedro, o Grande. Ela também não, conta apenas que é a imperatriz Catarina Romanov. Fazem qualquer coisa por 300 rublos (pouco menos de R$ 20): colocam o turista na carruagem, tiram foto e até dançam valsa.
A imagem da monarquia perambulando diante do Palácio de Inverno, marco zero do levante bolchevique, é retrato fiel de como a Rússia ignora sua revolução, que completa 100 anos hoje. Na Praça do Palácio, ao redor da Coluna de Alexandre, funcionários passaram o dia desfazendo uma estrutura metálica. Os cartazes no chão são das celebrações de três dias atrás, a festa da unidade nacional. “Revolução? Não celebramos mais”, disse Pedro. “Tomara que a monarquia continue na moda. Assim eu não perco meu emprego.”
Hoje, a perspectiva é que a TV estatal repita o mesmo blecaute de notícias do centenário da Revolução de Fevereiro. Em pesquisa recente da Academia de Ciências da Rússia, um terço da população foi incapaz de dizer o que sentia a respeito da revolução.
Em algum ponto, a Rússia de hoje se perdeu da Rússia de 1917. Segundo o jornalista Mikhail Zygar, autor do livro The Empire Must Die, sobre o colapso da revolução, os temas ligados ao velho império não sensibilizam mais a população. “É a nossa Atlântida.”
Zygar conta que a decisão de ignorar o centenário foi tomada em uma reunião a portas fechadas no Kremlin entre o presidente Vladimir Putin e assessores. Com base em informações de fontes do governo, ele afirma que a ordem de Putin era que “apenas historiadores” deveriam debater o centenário, não a sociedade.
Desde então, o que se viu foi um roteiro bem ensaiado. Na semana passada, Dmitri Peskov, porta-voz da presidência, anunciou que o Kremlin não tinha planos de comemorar os 100 anos da Revolução Russa. “O que vamos celebrar?”, questionou.
Apesar da vontade do Kremlin de editar a história da Rússia, a data não será completamente ignorada graças a uma pequena, mas firme, romaria de fiéis de várias partes do mundo. O historiador britânico Eric Hobsbawm dizia que a Revolução Russa tinha um caráter ecumênico. De fato, ela deu vida a partidos comunistas na Ásia, inspirou insurreições na América Latina e foi o fio condutor dos movimentos anticolonialistas africanos.
Ontem, na Estação Finlândia, local da chegada de Lenin a São Petersburgo, em abril de 1917, dez amigos peruanos tiraram fotos diante da estátua do líder da revolução. Nos últimos dias, a reportagem do Estado encontrou vários grupos de brasileiros, a maioria surpresa com a falta de uma agenda oficial. Outros nem se importaram e deram um jeito de fazer a própria festa.
Sábado à noite, em um bar da zona norte de Moscou, se reuniu parte da alta-roda do carnaval carioca. O regente do grupo era Alfredo Jacinto Melo, o Alfredinho, o dono e a alma do Bip-Bip, um botequim de Copacabana. Aos 74 anos, ele fez um discurso emocionado que interrompeu a roda de samba improvisada. “Meu sonho desde menino era conhecer a Rússia. Eu queria agradecer, porque, se não fosse a Revolução Russa, nós no Brasil estaríamos falando alemão.” Foi aplaudido de pé por um punhado de brasileiros, para o espanto da plateia da casa.