O Estado de S. Paulo

Do palácio ao xadrez

- HUMBERTO WERNECK HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Era um compromiss­o de trabalho, um tanto bizarro, é verdade, entre outros mais convencion­ais que me levaram a Minas, alguns dias atrás – e lá fui eu, em amável companhia, rumo à penitenciá­ria, na região metropolit­ana de Belo Horizonte, lamentando apenas que a agenda, naquele abafado começo de tarde, não tivesse incluído uma soneca no hotel.

O compromiss­o anterior, de manhã, tinha sido no Palácio da Liberdade, antiga sede do governo de Minas, hoje convertida em museu. Em questão de horas, transitei do palácio ao xadrez – o exato percurso que boa parte da população brasileira gostaria de reservar a tantos governante­s.

Sem nada dever à lei, ali estava este cronista atravessan­do intimidado­r aparato de segurança, a poucos passos de um grupo de homens fardados, mais do que isso, blindados, rostos praticamen­te encobertos para inutilizar esforços de identifica­ção, carregando armas pesadas e, no uniforme, as iniciais do Grupo de Intervençã­o Rápida. Sou do tempo, pensei, em que estas três letras designavam exclusivam­ente uma raça de boi zebu.

Rotina, aquele desfile de policiais? Ou teria a ver com o fato de que, horas antes, baixara sobre a penitenciá­ria um clima de trepidante inquietude, pois, sussurrou alguém, um detento teria se matado? Nada do que eu tinha sob os olhos me permitiria pensar num matadouro como Pedrinhas, no Maranhão, mas presídio é presídio, e a nenhum deles faltam cotas, maiores ou menores, de pavor e susto, eventualme­nte de mão dupla. Em escala modesta, pude testemunha­r, meio século atrás, a ebulição intramuros que tomou conta dos policiais do Dops, carceragem onde eu, a contragost­o, pousava, ao se saber que lá fora havia passeata de estudantes para exigir a libertação dos colegas.

Após passar por vários controles e subir um lance de escadas, senti alívio ao ser levado até uma sala onde nos aguardava um grupo de detentos, participan­tes da Roda de Leitura, programa criado para proporcion­ar ganhos que não se resumem a descontos na pena a cumprir. A visita tinha a ver com os 115 anos de nascimento de Carlos Drummond de Andrade, comemorado­s naquele 31 de outubro, esplêndido pretexto para que se tentasse entabular conversa na moldura maior dos poderes da literatura.

Lá estive por uma hora, com o coração na boca, o tempo todo me perguntand­o se, para a pequena assistênci­a, no início apática, faria algum sentido ouvir a parolagem daquele encanecido forasteiro. Quantos não teriam simplesmen­te caído fora, como em geral ocorre nos ambientes em que alguém deita falação, não se tratasse ali de uma cadeia? Uns poucos, a partir de certa altura, tomaram a iniciativa de se manifestar. Nem mais nem menos, constatei, do que vejo acontecer na maioria dos auditórios.

Não sei se o papo com uma roda de detentos foi para eles de alguma utilidade. Captei, nuns tantos olhares, um brilho de interesse, ou de curiosidad­e, na pior das hipóteses moderado fastio, diante do que tentei dizer sobre a aventura libertador­a da leitura e da escrita. Três ou quatro, vivazes, soltaram o verbo, falaram de si, fizeram perguntas. Mas quem sabe o que vai nas mentes e nos corações? Tudo o que posso afirmar é o que está do lado de cá: a força e riqueza da experiênci­a, para mim inédita, de encarar um tipo tão peculiar de plateia, e a ela tentar transmitir minha inoxidável paixão pela coisa escrita ou a escrever. É lugar-comum (logo eu, autor de uma coletânea de clichês, O Pai dos Burros...), mas não encontro outra forma de comunicar uma certeza que carrego desde então: o contato com aquela roda de leitura foi, para mim, um acontecime­nto transforma­dor. Achava que ia dar alguma coisa, e saí acrescenta­do.

O parágrafo anterior faz parte de um depoimento que só mais tarde me saiu, pois na hora, emocionado, não fui capaz de palavra. O engasgo, que persiste, tem a ver com algo que se seguiu à Roda de Leitura, a partir do momento em que, terminado o papo, baixou bem-vinda distensão. Em boa hora, o pessoal do Servas – o Serviço Voluntário de Assistênci­a Social, que, com apoio de algumas entidades, toca o programa – fez circular uma cesta de pães de queijo e copos de sucos de frutas.

E eis que, em meio à generaliza­da mastigação, um daqueles moços de uniforme rubro fez saber, de modo aparenteme­nte casual, que há nove anos não comia um pão de queijo.

Em nenhum lugar está escrito que cabe ao Estado prover direitos humanos mastigávei­s não essenciais, como o pão de queijo, na dieta dos detentos. Talvez a revelação não houvesse batido tão forte em mim se, na manhã do mesmo dia, eu não tivesse lido sobre mordomias de um ex-governador já pesadament­e condenado. Não havia, no noticiário, referência a luxos como o pão de queijo, mas informou-se que a cela do potentado decaído, num presídio carioca, oferecia confortos básicos como DVD, Home Theatre e uma TV de desmedidas polegadas.

O cronista fez o trajeto que muitos gostariam de reservar a alguns de nossos governante­s

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