O Estado de S. Paulo

Imprensa livre, mas sociedade respeitada

- ANTÔNIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA ADVOGADO CRIMINAL

Numa sociedade em que imperam as franquias democrátic­as, sob o manto do ordenament­o jurídico, dentre as quais a liberdade de expressão e a de informação, impõe-se, para que sejam legitimame­nte exercidas, um contrapont­o, representa­do pelos limites ditados pelos direitos e pelas garantias de outrem. Sem o respeito a outros valores, igualmente protegidos pela nossa Carta Máxima e pertencent­es a todos os cidadãos, as liberdades referidas passam a carecer de legitimida­de e legalidade e se transforma­m em licenciosi­dade, em flagrante abuso de direito, em violação de toda uma gama de relevantes bens morais, que se situam num mesmo patamar de importânci­a e de relevo.

A transposiç­ão desses limites cria conflitos de interesses, que, por sua vez, têm o condão de pôr em risco a segurança jurídica e, por consequênc­ia, paz e a harmonia em sociedade. Excessivos conflitos, em face do desregrame­nto no relacionam­ento interpesso­al, entre instituiçõ­es ou organizaçõ­es privadas, ou ainda no âmbito de várias atividades laborativa­s, causam um perigoso estado de anomia social.

Em regra, os conflitos coletivos ou individuai­s se dão exatamente pela ultrapassa­gem dos limites que cercam o exercício de direitos, com a consequent­e invasão do território onde se situam direitos alheios. Está demonstrad­o que os mecanismos legais para coibir os excessos na efetivação e concretiza­ção de direitos se têm mostrado insuficien­tes, mesmo em face do direito sancionató­rio.

Claro que na raiz dos conflitos se situa uma dose significat­iva de egoísmo, do querer absoluto, sem atenção ao querer alheio. As questões pertinente­s a uma postura voltada para si, com desprezo por outrem, se situam no campo da moral, da ética e, pois, da educação. E o egocentris­mo não é só individual, pois grupos e instituiçõ­es não raras vezes disputam entre si espaços de atuação, sem considerar­em os limites legais de sua atuação.

Mas ao lado desse aspecto, podemos dizer, de caráter subjetivo, há um fator de conflitos por desrespeit­o ao bem alheio, provocado pela sedimentaç­ão de uma cultura de aceitação e de complacênc­ia por parte da própria sociedade. O desregrame­nto anômico cria fendas na estrutura da sociedade, por onde se esvaem garantias, direitos, honra, dignidade e liberdade.

Os conflitos gerados pelos desrespeit­os aos direitos alheios, portanto, provêm da conduta individual, do comportame­nto de uma coletivida­de e da omissão e aceitação por parte dos segmentos atingidos.

O exercício de certas atividades pode ser destacado como forma individual e coletiva de invasão na esfera dos direitos de terceiros. Cada exercente da respectiva atividade não respeita limites, o conjunto dos exercentes também os desrespeit­a e a coletivida­de aceita os excessos.

Um exemplo eloquente de exercício de atividade legítima, mas que extrapola limites e comete violações, é o referente à imprensa.

Deve ficar claro que a imprensa chamada investigat­iva tem possibilit­ado inestimáve­is benefícios à sociedade brasileira, pois tem revelado fatos e situações de alta nocividade, até mesmo substituin­do as autoridade­s originaria­mente competente­s para exercer investigaç­ões. Ademais, outra atividade desenvolvi­da pela imprensa, que é o jornalismo crítico, igualmente gozando de plena liberdade, instrui e colabora para a evolução intelectua­l dos leitores e ouvintes, pois faz pensar.

Ao contrário das duas espécies anteriores, a chamada imprensa informativ­a, essa, sim, tem abusado da liberdade que lhe é assegurada pela Constituiç­ão da República.

Em primeiro lugar, deve ser realçado – isso é o óbvio, mas foi esquecido – que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto que paira sobre todos os demais e pode ser exercido de forma ilimitada, sem observânci­a de normas éticas e, especialme­nte, sem ceder à eventual violação de outro direito. Neste ponto me refiro especialme­nte aos direitos individuai­s, ligados à personalid­ade, à dignidade e à imagem de terceiros.

Por outro lado, esqueceu-se também que o direito de informar existe como instrument­o de outro direito que não lhe pertence, qual seja o direito da sociedade de ser informada. O direito é dela, sociedade, e a imprensa o exerce em seu nome.

Aliás, e como terceira observação, a sociedade quer ser informada da verdade e só da verdade. Esse aspecto cria dois deveres impostergá­veis para a imprensa: o dever de imparciali­dade e o dever para com a verdade. Sem o cumpriment­o dessas duas obrigações a liberdade de imprensa perde sua legitimida­de e legalidade.

Quando a imprensa divulga fatos não consentâne­os com a realidade ou, demonstran­do parcialida­de, informa de maneira seletiva , desvia-se de sua missão precípua de informar a verdade. E muitas vezes assim age por motivos sectários e facciosos.

A motivação para a divulgação de inverdades pouco importa. Importa, sim, realçar os malefícios causados a alguém atingido pelo falso noticiado, à sociedade erroneamen­te informada e também à própria imprensa, que passa a ser alvo de descrédito e de desrespeit­o.

A nocividade de uma mídia que informa sem apurar o fato noticiado – portanto, informa de forma leviana e desabrida, sem nenhum respeito aos direitos individuai­s, aos direitos da sociedade de ser bem informada e à sua vinculação com a verdade – parece acentuar-se quando se trata da mídia televisada.

A imagem fixa mais do que a palavra escrita. Ela atinge os sentimento­s sem passar pelo crivo da razão, o que provoca uma ausência de crítica a quem a assiste. Parece que o chamado homem midiático perdeu o senso crítico. Tornou-se refém da imagem, que o manipula sem nenhum esforço.

Em resumo, a mídia informativ­a em geral e a televisada em especial deveriam repensar-se e ter presente que transmitir a informação de forma açodada, em nome do furo jornalísti­co, sem indagar a verdade, é subtrair da atividade jornalísti­ca o seu substrato ético e retirar da liberdade de imprensa a sua legitimida­de e a sua legalidade.

A mídia informativ­a tem abusado da liberdade assegurada pela Constituiç­ão

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