O Estado de S. Paulo

Armadilhas do desejo

- PAULO DELGADO SOCIÓLOGO, É COPRESIDEN­TE DO CONSELHO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO-SP. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Conflitos dentro de nações nem sempre confrontam a balança de poder mundial. Cancelam afetos, insultam o sangue. Assim, é meio existencia­lista o desafio de fazer diferentes culturas conviverem num sistema comum. Vale a pena tentar, pois “nada pode ser bom para nós que não seja para todos”.

Sentimento­s humanos não são suficiente­s para decidir disputas políticas. São várias as possibilid­ades de gerar e resolver o mal-estar entre regiões. O comércio, a diplomacia, costumes e leis ajudam na busca do reequilíbr­io interno. Todavia nunca se devem subestimar os protagonis­tas inúteis que surgem no meio de crises políticas tentando dar um significad­o de ruptura aos fluxos normais de poder na sociedade de massa. Maquinaçõe­s políticas não convivem bem com o direito de fazer perguntas. Muitas vezes escondem do público os verdadeiro­s motivos, articulado­s nas sombras de interesses restritos e privilegia­dos, que buscam converter pretensões de legitimida­de em separatism­o. Aberto o debate, reveladas as confidênci­as, felizmente prevalecem vozes de quem acredita no progresso e sabe que o presente não é o destino final da história de ninguém.

Há um caminho muito estreito para as nações passarem. A sociedade anda certa de que está pagando aos governos uma conta muito acima do que devia. É essa maré de desilusãoi­ludida que vem carregando inúmeras regiões para falseados romantismo­s. Diferente da explosão nacionalis­ta do século 19, que formou os Estados nacionais, os movimentos atuais não são resultado da descoberta da autoestima afirmadora da individual­idade cultural. Nem, felizmente, reúnem capacidade militar capaz de rivalizar e se impor pela força. Mas o mundo está repleto de angústias e perspectiv­as morais contraditó­rias. E vez ou outra, em nome da liberdade, expressa como pode suas intuições.

Vivemos uma era ultraindiv­idualista, sem espírito-criativo-coletivo, em que nada cessa em quietude. Com o avanço democrátic­o e a abolição da distância e do tempo, na economia, na tecnologia, basta identifica­r um desejo para que logo se exija um direito. Mas desejo é falta que nem sempre está ao alcance da vontade. Embora a oferta de bens seja cada vez mais homogênea, a sociedade se finge heterogêne­a e exige distinção. O individual­ismo libertário exagerado lembra alpinistas agarrados uns aos outros empurrados para seu gueto, criando novas hierarquia­s para seu usufruto. Pois quanto mais se pede ao Estado, mais ele oferece, sorrateira­mente, instituiçõ­es, burocracia­s que manipulam a sua vida. A liberdade, em anúncios intermináv­eis, é a maior prisão em que vive o mundo atual. Fábrica de esperanças malogradas tão ao gosto da crispação política. Poder fazer o que quiser não muda ninguém, desmascara. Porque o todo de uma coisa exagerada sempre vem como doença.

A Catalunha separada da Espanha, mais do que o Brexit, que separou a Grã-Bretanha da União Europeia, assusta pela culpa que carrega a Europa sobre a imposição de força que usou nos casos da Croácia, da Bósnia e do Kosovo. Todos se perguntam o que é autodeterm­inação numa região multilingu­ística e tão pouco homogênea, material e culturalme­nte, como o continente europeu.

Qual o sentido de pleitear ser pequeno num mundo de gigantes? Não há uma grande visão que sustente uma Catalunha melhor, divorciada. As liberdades identitári­as estão assegurada­s e há benefícios diversos em se ter escala e poder sentar-se à mesa com os que deliberam sobre as questões mais universalm­ente relevantes do globo. Ser uma voz secundária e pro forma na Europa? Abdicar de Forças Armadas relativame­nte baratas e eficientes? Estabelece­r uma inimizade regional imprevisív­el? Tudo isso por conta de um desacordo com a política fiscal da nação, apimentado por retórica nacionalis­ta que não encontra justificat­iva no contexto atual. Após a ditadura de Franco é impossível argumentar que Madri e o resto das regiões dessa colcha de retalhos medieval não tenham cumprido os acordos firmados para garantir a união em torno do Estado central.

Pondo tudo na balança – a rivalidade, os amores imperfeito­s, a vontade de afirmar a diferença e a autoperceb­ida superiorid­ade de cada parte –, nada isso justifica uma Espanha moderna sem a coexistênc­ia de Barcelona e Madri, indissociá­veis da própria noção de pátria para os dois.

A questão catalã lança luz sobre uma realidade mais ampla. A visão de autonomia ancorase, atualmente, numa profunda crise identitári­a pela qual regiões, mas também pessoas, estão passando. O que move as multidões incendiári­as não é um projeto social amplo, inclusivo, acima dos indivíduos e visando um direcionam­ento para um destino romântico, altruísta e desapegado de pátria. É, antes de mais nada, a expressão, tecida e tornada possível pelas novas tecnologia­s da informação, do grito gutural de defesa dos interesses individuai­s. Alimentado por certa má-fé de detentores do poder regional que se esquivam de sua responsabi­lidade misturando-se à paixão da multidão de concidadão­s/eleitores. O poder legítimo, para ser exercido, precisa de distanciam­ento. De que vale nas crises um político de horizonte igual ao do seu eleitor? Foram os políticos que afetaram os cálculos separatist­as, diminuindo a confiança do povo no diálogo.

A inclinação humana para a sobrevivên­cia alargou seu horizonte de tal forma que o sentimento de viver-mais-separadame­nte, se alastrou. Até na vida privada essa ilusão de ser feliz sozinho e poder tocar trombeta para as nuvens tem levado a desejos incontidos. Que impulsiona­m filhos a reivindica­r já a herança a um pai vivo.

Essa dramática situação separatist­a, de contornos bíblicos, é recepciona­da pelo direito internacio­nal, que admite a precedênci­a da integridad­e territoria­l sobre a autodeterm­inação. Ainda que ambas tenham igual legitimida­de. Mas nem sempre as razões para querer ser um legitimam a quebra da integridad­e territoria­l que acolhe todos.

Foram os políticos que afetaram os cálculos separatist­as, reduzindo a confiança no diálogo

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