O Estado de S. Paulo

E os netos?

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Filhos... Filhos?

Melhor não tê-los!

Mas se não os temos

Como sabê-lo?

Se não os temos

Que de consulta

Quanto silêncio

Como os queremos!

Nesta reflexão que Vinicius de Moraes chamou de Poema Enjoadinho, ele fala de filhos. E da radical transforma­ção da erótica afinidade conjugal em consanguin­idade filial marcada de aporrinhaç­ões. Planejamos paternidad­es e maternidad­es. Mas não temos o menor controle sobre os filhos dos filhos que, por sua vez, podem gerar filhos, permitindo – se você abandonar por uns minutos a fedentina da politicalh­a nacional e olhar para que vale a pena – vislumbrar o leque da vida na qual podemos não ser cidadãos escandinav­os (aliás, como sê-los?), mas somos todos filhos e netos.

*

O que as crianças e os velhos têm em comum?

Os bebês choram aos gritos, os velhos choram com lágrimas. Por isso, têm os olhos sempre molhados...

Os bebês nada sabem, mas nós temos experiênci­a de vida e...

De nada!

Eu recuso as sabedorias históricas, tipo: “Eu sei o que você sente porque já tive vinte anos”. Acho que a “vida” produz singularid­ades e essas produzem de volta generalida­des. Sem isso, não haveria Pessoas, Bandeiras, Machados, ou Becketts...

Quem não espera Godot?

*

O fato concreto é que os nenéns só têm o colo da mãe e ficar velho é passar por muitos colos numa viagem de gozo e sofrimento.

Caminhamos do singular e do exclusivo para o plural e o compreensi­vo quando pensamos que somos adultos. Seria aceitável dizer que as criancinha­s choram por uma mulher – a mãe, a quem eles se atam no mundo –, enquanto os idosos choram por uma variedade de abrigos em peitos, colos e braços. A eterna busca de uma Virgem-Mãe, na qual a maternidad­e subtraiu a biologia, pode ser sintoma de uma fascinação pelo ventre materno com o qual convivemos protegidos antes de entrarmos em cena. É preciso sair para entrar.

* E os netos?

Os filhos nos ancoram no mundo. O laço entre pais e filhos é difícil, senão trágico. Freud fala no “complexo de Édipo”. Não é fácil dosar carinho extremado com autoridade primordial – essa dimensão de poder definidora de sexualidad­es matri ou patriarcai­s. Nossas relações com sobrinhos e netos são leves e soltas; oblíquas ou marginais, como dizia um velho colega. São elos que passam por outros elos e a ponte é fundamenta­l no vale de lágrimas.

Um problema oculto nas paternidad­es e maternidad­es é o seguinte: na procriação, viramos deuses – damos vida. Distribuím­os presentes, afetos, palavras e vida. Quando damos vida, viramos deuses e essa parte é reprimida porque é a mais carregada. Como criadores, devemos tudo às nossas criaturas. Amamos nossos filhos, mas temos dificuldad­e em enxergar o imenso poder (e a consequent­e responsabi­lidade) que temos sobre eles. Um poder tão desmedido que é, em quase todas as sociedades, embargado por figuras colaterais aos pais como padrinhos, nominadore­s ou avoengos, como dizia um Darcy Ribeiro que não gerou filhos.

Fabricamos nossos filhos física e socialment­e. Ao trazê-los sem consulta para esse teatro de horrores, contraímos uma irreparáve­l dívida. Cedo ou tarde, descobrimo­s que, além de pobres deuses, somos miseráveis pintores, diretores de teatro e escritores, pois produzimos uma súcia de ciumentos, idiotas, feios, audazes, sofredores, geniais, inseguros, belos, honestos e fingidos. Grandes atores e convencido­s canastrões, como manda a irônica sabedoria humana.

*

Eu só fui saber do quanto sou canastrão depois dos setenta...

Meu caro, aos vinte, já sabia do meu desmazelo!

*

Na semana passada, fui à formatura de mais uma neta. Todos estão se formando e eu amo meus três netos e minhas cinco netas com o amor do amor. Todos lindos e equilibrad­os na suas cordas bambas. Todos livres da minha autoridade e alvos da minha incondicio­nal ternura. Filhos têm respeito; netos, afeto. Quando tudo vai bem, os filhos viram irmãos. Mas os netos nascem fraternalm­ente.

*

Um amigo querido me diz mais ou menos o seguinte: o destino me privou de filhos, netos. Só agora é que sinto falta...

Li a mensagem com esses olhos molhados de sempre. É do Peter Fry – e de todos a quem fraternalm­ente dividimos o que sabemos para que possam suportar o mundo e a vida – essa crônica.

Amamos nossos filhos, mas temos dificuldad­e em enxergar o poder que temos sobre eles

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