O Estado de S. Paulo

Assombro antropofág­ico no palco

Mesmo sem sabor de novidade, ‘O Rei da Vela’ surpreende ao traçar acurado retrato da atual crise brasileira

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

COM RITMO E HUMOR AFIADO, ENCENAÇÃO RESSALTA PERSPICÁCI­A DO TEXTO.

Pode-se rever um filme, um quadro, um livro. Mas uma peça, cerrada a cortina, desaparece. Ficam os registros, mas não a obra de arte em si. Não existe meio de se conhecer os espetáculo­s do passado nem de guardar as grandes realizaçõe­s do nosso tempo para o futuro. O que a versão em cartaz de O Rei da Vela desafia, de certa maneira, é essa intrínseca fugacidade do teatro.

Passados 50 anos de sua estreia, o que assistimos agora no Sesc Pinheiros não é propriamen­te uma nova montagem do texto de Oswald de Andrade, mas uma recriação da encenação de 1967. Ao tomar a decisão de resgatar em minúcias o cenário de Helio Eichbauer e de manter Renato Borghi no papel do protagonis­ta Abelardo, cria-se a sensação de que existe uma chance de reviver a experiênci­a histórica do Teatro Oficina.

Obviamente, é impossível retomar o impacto original. A obra veio coroar a trajetória fulgurante de José Celso Martinez Corrêa na década de 1960, firmava seu lugar como mais importante diretor da época e, por fim, vinha apresentar Oswald de Andrade aos tropicalis­tas – o que nos legou uma ampla e conhecida herança. O contato com o sarcasmo e a crítica demolidora do autor deu a Gilberto Gil, Caetano Veloso, Rogério Duprat e Os Mutantes a munição necessária para apontarem suas armas não apenas contra o imperialis­mo americano, mas diretament­e para a hipocrisia da burguesia nacional.

Mesmo sem sabor de novidade, O Rei da Vela consegue ser mais do que um passeio ao passado. Ainda que tenha tom de manifesto – foi escrito em 1933, no calor da quebra da Bolsa de Nova York – o texto de Oswald cresce pela multiplici­dade de contradiçõ­es que aponta. Retratava-se, então, a queda da aristocrac­ia cafeeira, que vinha dar espaço à ascensão da burguesia. Abelardo 1º é um agiota que, para legitimar sua riqueza e lugar na sociedade, quer se casar com Heloísa de Lesbos, aristocrat­a falida. Nesse xadrez, os peões no tabuleiro se alteram, mas não o jogo. A classe que está no poder continua a se portar como predadora, pronta a depauperar o País. O enredo soa como uma paródia, carnavaliz­ada, do que escreveu Lampedusa, no romance O Leopardo: “Se quere- mos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. Máxima, aliás, que o noticiário insiste em reiterar diariament­e.

O surgimento de novas linguagens cênicas decerto tirou algo do impacto estético do espetáculo, que provocou espanto pelo seu palco giratório – modelo que Zé Celso importou do Berliner Ensemble – e pelas ambientaçõ­es luxuriante­s de Eichbauer para os três atos, com alusões ao circo, ao teatro de revista e a ópera. Mas as boas escolhas do diretor continuam válidas. Mesmo sem ter conhecido Bertolt Brecht, Oswald aproximava-se do teatro épico – corrente que busca manter o público distanciad­o das estratégia­s de ilusão usadas em cena e atento à crítica social. Zé Celso sabe usar o gênero com uma propícia dose de deboche e sem prender-se às suas amarras. Com bom ritmo e humor afiado, a encenação ressalta a perspicáci­a do texto. Mesmo com arestas em algumas interpreta­ções, o elenco mostrase suficiente­mente coeso para cativar o interesse da plateia por cada um dos três atos. Aos 80 anos, Renato Borghi mantém o vigor do personagem e reacende o seu sadismo. O ator, que à época da estreia buscou amparo em figuras populares como Ademar de Barros e Chacrinha para sua composição, descobre novas fontes. Antropofag­icamente, se alimenta da sordidez dos poderosos de todos os tempos para nos devolver um Abelardo de inigualáve­l cinismo. Zé Celso está em cena com uma versão anárquica de Dona Poloquinha, defensora dos valores da família e da tradição, e Elcio Nogueira Seixas se destaca por trazer contornos mais fortes ao personagem do investidor americano.

Chega a ser assombrosa a acurácia de Oswald em apontar fenômenos e sintomas da convulsão que toma o Brasil. Como se os últimos dois anos somassem novos e insuspeita­dos sentidos à paisagem descrita pelo modernista. O que poderia ser lido, em outro contexto, como réstia de esperança dissolve-se diante do público. Tudo que está em cena parece um espelho distorcido desse momento de fim das ilusões, de apagamento do mito do país do futuro.

O que está a ruir é o poderoso mito fundador que o Brasil sustentava por séculos. Amparado por ampla historiogr­afia, esse discurso de redenção sugeria que as precarieda­des seriam, um dia, superadas. Alcançaría­mos, por fim, um grande lugar no mundo. Havia a natureza pródiga, a terra farta, o povo amistoso. Éramos o gigante deitado em berço esplêndido. Darcy Ribeiro vislumbrav­a uma “nova Roma”. Quem ousaria tal vaticínio hoje? Chegamos a um estado em que a fábula edulcorada se desfez. O Rei da Vela nos coloca diante de uma encruzilha­da de onde não se vê caminho nem sentido.

O REI DA VELA

Sesc Pinheiros Rua Paes Leme, 195. Tel.: 30959400. Sáb. 19h. Dom. 18h.

R$ 50. Até 19/11

ESPETÁCULO CONSEGUE SER MAIS DO QUE UM PASSEIO AO PASSADO

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO Em cena. Uma propícia dose de deboche, mas sem amarras

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