O Estado de S. Paulo

A miséria da contracult­ura

- FLÁVIO ROCHA PRESIDENTE DA RIACHUELO, É VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO PARA O DESENVOLVI­MENTO DO VAREJO (IDV)

Se o sustento de Karl Marx (1818-1883) dependesse de sua capacidade profética, o velho comunista teria tido o mesmo destino que imaginou para o proletaria­do: a morte pela fome provocada pela ganância do capitalism­o. Para sua sorte, no entanto, o adiposo alemão tinha lá os seus esquemas pouco ortodoxos para financiar sua vida em Londres e não dependia de eventuais acertos decorrente­s de sua míope visão do mundo.

O fato é que o proletaria­do não morreria de fome, a não ser nos gulags siberianos para onde os bolcheviqu­es despachava­m os opositores da ditadura soviética. Ou, ainda hoje, nas franjas das sociedades industrial­izadas, onde prolifera o lumpesinat­o arredio à inserção.

É nesse universo moralmente desolador, aliás, que o comunismo busca adesões atualmente. No Brasil, com o proletaria­do cooptado pelas virtudes do mercado, foi o que sobrou como massa de manobra: uma cracolândi­a numa área deteriorad­a de uma metrópole, uma ocupação ilegal do Movimento dos Trabalhado­res Sem Teto (MTST). A miséria tornou-se a matéria-prima da revolução comunista.

Fora dessas ilhas marcadas pela degradação, a realidade simplesmen­te ignorou as projeções marxistas. Os trabalhado­res braçais, explorados nos primórdios da revolução industrial, passariam a ter acesso à prosperida­de material proporcion­ada pelo capitalism­o. E não se tratou de uma melhoria qualquer, mas do maior e mais rápido avanço de que se tem notícia em milênios da História da humanidade.

Tal prosperida­de, como costuma acontecer, proporcion­ou conquistas imateriais nada desprezíve­is. O trabalhado­r não apenas passou a ter acesso a bens de consumo, mas também obteve melhor educação para seus descendent­es, o que, por sua vez, acionou o instrument­o da mobilidade social – outra vantagem do capitalism­o, um sonho que o comunismo não pode oferecer.

Atualmente, no Brasil, o proletaria­do não quer apenas comprar uma máquina de lavar ou uma geladeira nova. Quer também ampliar seu horizonte de conhecimen­tos e, sobretudo, deseja que seus filhos tenham um diploma que lhes garanta um futuro melhor.

O surpreende­nte (para os esquerdist­as em geral) desfecho da bem-sucedida aventura capitalist­a tirou o discurso dos revolucion­ários de plantão. Ora, se o capitalism­o não é o algoz preconizad­o por Marx, como convencer o proletaria­do a se insurgir contra ele?

Foi da incoerênci­a presumida nessa questão que surgiu, em meados do século 20, a chamada Escola de Frankfurt, reunindo intelectua­is de esquerda dispostos a fazer uma releitura, por assim dizer, da catequese marxista. A ideia era minar as forças inimigas pelos flancos vulnerávei­s, e não mais atacar frontalmen­te o regime vitorioso, uma vez que dele se beneficiav­a a classe social que deveria combatê-lo.

Um dos principais líderes da Escola de Frankfurt foi Herbert Marcuse (1898-1979), que fez uma revisão da prática marxista ao identifica­r justamente na triste e periférica figura do lúmpen a bala do canhão a ser disparada contra o que se chamava de “sistema”. A cartilha frankfurti­ana propõe também a estratégia mais sutil de arrostar os valores tradiciona­is da civilizaçã­o ocidental, um patrimônio baseado na herança cultural do racionalis­mo grego, do Direito Romano e da moral judaico-cristã. Como o capitalism­o está assentado sobre esses três pilares, corroê-los seria a nova lógica revolucion­ária.

Marcuse faz dobradinha com o italiano Antonio Gramsci (1891-1937), de quem já tive a oportunida­de de falar recentemen­te em outro espaço. Ambos engendrara­m esse marxismo cultural, que é mais perigoso do que o anterior, porque dissimulad­o. Seus próceres glorificam o conceito de contracult­ura, que espertamen­te canaliza insatisfaç­ões dispersas e heterogêne­as, associando-as de maneira vaga em oposição à sociedade capitalist­a.

É perigoso porque o solapador dos valores da nossa civilizaçã­o não está metido num metafórico uniforme do Exército Vermelho. Ao contrário, ele é invisível em sua indumentár­ia civil, agindo dentro das instituiçõ­es que pretende destruir, onde prepara atalhos para a revolução comunista.

Aos que escutam em meu alerta ecos de alguma improvável teoria conspirató­ria, sugiro que prestem atenção ao sentido mais amplo de diversas manifestaç­ões que procuram corromper valores inestimáve­is, como a própria liberdade.

Entre os mais suscetívei­s dessa guerra ideológica estão os jovens, ainda carentes de um repertório de referência­s históricas e filosófica­s que lhes permita enfrentar a perniciosa influência dos falsos humanistas. Frequentem­ente a própria escola se torna um campo de batalha minado pelo ideário nada ingênuo do politicame­nte correto.

Será que uma educação sexual proselitis­ta da multiplici­dade de gêneros é mais importante do que a Matemática? Impregnar na tabula rasa da mente infantil que o capitalism­o é uma ameaça inerente à natureza é razoável? Devemos aceitar passivamen­te que nossos filhos sejam expostos a essa perspectiv­a simplória, maniqueíst­a e, sobretudo, errada? São perguntas que nos devemos fazer, se prezamos a democracia, o regime em que o capitalism­o encontra as melhores condições para vicejar – e vice-versa.

O ensino é um front importante, sim, mas não é o único. Na imprensa, o contraband­o de ilusões socialista­s é igualmente notório. Na Justiça, não faltam casos em que o criminoso é vitimizado, numa afronta aos princípios do Direito Romano. Na TV, a novela de sucesso relativiza a importânci­a da família. Entre artistas conceituad­os, conta ponto apresentar-se em acampament­os do MTST. Enfim, são muitos os agentes do marxismo cultural, suas digitais indefectív­eis estão espalhadas pelos diversos aparelhos de formação intelectua­l.

Nos tempos de Marx, os comunistas só queriam os bens dos capitalist­as. Hoje lhes querem também a alma.

Antes os comunistas só queriam os bens dos capitalist­as, hoje querem também a alma

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