O Estado de S. Paulo

Os chatos, os dados e a lei

- JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO TWITTER: @ZEROTOLEDO BLOGS.ESTADAO.COM.BR/VOX-PUBLICA/ JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS

Se assessoria­s de imprensa existissem para prestar serviço à imprensa não seria necessária uma lei só para obrigar o poder público a ser tão transparen­te quanto manda a Constituiç­ão. Não é o caso. A preposição é outra. São assessoria­s para lidar com a imprensa, ouvi-la, atendê-la e, se necessário, driblá-la. Daí que jornalista­s tenham patrocinad­o a Lei de Acesso às Informaçõe­s Públicas (LAI) e sejam seus assíduos usuários, no Brasil e no exterior. É do jogo. Mas é sempre curioso espiar sob o véu de hipocrisia que cobre a relação imprensa X poder.

Prefeito paulistano, João Doria demitiu assessor gravado dizendo que faria o que pudesse para dificultar o trabalho dos jornalista­s que mais fazem pedidos de informação via LAI à Prefeitura. Conforme revelado por um deles – o repórter Luiz Fernando Toledo, do Estado –, o demitido dizia fazer um ranking mental dos mais “chatos”: o próprio Toledo (não é parente); Roberta Giacomoni, da TV Globo; e William Cardoso, do Agora.

A declaração do assessor – extraída da gravação oficial de reunião da comissão da Prefeitura que analisa os pedidos de informação – éo maior elogio que o trio poderia receber. Incomodar tanto os poderosos e seus auxiliares, a ponto de serem lembrados pelo nome e classifica­dos como os mais pidões, é um reconhecim­ento maior do que ganhar o saudoso Prêmio Esso. Deveriam incorporar ao currículo: “dos mais chatos repórteres a cobrir a Prefeitura de São Paulo, segundo a própria”.

Quanto ao assessor, caiu por se vangloriar. O prefeito disse em entrevista que ele foi demitido, antes de mais nada, porque falou o que não devia. Não tivesse falado, continuari­a lá? O prefeito dá a entender que não, diz que a ordem é outra.

Não se tem notícia de que a atitude descrita pelo ex-assessor, desde que não explicitad­a, tenha levado algum colega seu à demissão. Nem em prefeitura­s, nem em governos estaduais ou federal, nem no Legislativ­o ou Judiciário. Nem hoje nem antes. Simplesmen­te porque filtrar informaçõe­s é o seu trabalho. Tanto é que nenhum dos outros participan­tes da reunião contestou a declaração do futuro demitido, nem fez comentário estranhand­o.

Nas palavras também gravadas de um ex-ministro da Fazenda, “não tenho escrúpulos, acho que é isso mesmo: o que é bom a gente fatura, o que é ruim, esconde-se”. O ministro acabou caindo. De novo, pelo que disse, não pelo que fazia. A prática recorrente 23 anos atrás é recorrente agora. E não só no Brasil.

O repórter Philip Bump, do Washington Post, mantém uma lista de tudo o que Trump desfez como presidente. Como nota a revista Wired, destaca-se entre as desfeitas a quantidade de bases de dados que deixaram de ser informadas à população: pagamentos de petroleira­s a governos estrangeir­os, salários organizado­s por raça e gênero dos empregados, registros de acidentes de trabalho, violações às leis do trabalho por contratado­s pelo governo, relação de visitantes à Casa Branca, entre outras.

A ocultação de informaçõe­s reforça a importânci­a da Lei de Acesso. É por meio dela que todo cidadão, jornalista ou não, pode requisitar, na íntegra, quaisquer dados públicos em poder do Estado, desde que não estejam legalmente protegidos por sigilo. E daí fazer o próprio filtro e interpreta­ção, sem estar sujeito “ao que é bom a gente fatura, o que é ruim, esconde-se”.

Dificultar o acesso sem motivo, demorar a responder, alegar custos inexistent­es, barrar pedidos desse ou daquele são vícios na administra­ção pública. Além de ilegal, é burro. Há tantos, mas tantos dados que seria mais inteligent­e dar tudo, voluntaria­mente, e torcer para os “chatos” se afogarem neles.

Dificultar o acesso sem motivo, demorar a responder, barrar pedidos, além de ilegal, é burro

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