O Estado de S. Paulo

O sonho (não) acabou

João Moreira Salles e o fim das utopias em ‘No Intenso Agora’

- Luiz Carlos Merten

Há controvérs­ia, claro. Para a Abraccine, Associação Brasileira de Críticos Cinematogr­áficos, Cabra Marcado Para Morrer,

de Eduardo C out inho,éo melhor documentár­io brasileiro, seguido de Jogo de Cena, também de Coutinho. Santiago, de João Moreira Salles,éo terceiro. Pode-se refazer alista com Santiago na cabeça e Edifício Mas ter, o melhor Coutinho, em segundo. Mas alista também teria de abrigar o novo documentár­io de João, No Intenso Agora. Terceiro? O melhor filme brasileiro do ano? Muito provavelme­nte.

No Intenso Agora estreia nesta quinta, 9. O filme começou a nascer quando João Moreira Salles fazia Santiago, seu longa (viscontian­o) sobre o mordomo da família Moreira Salles. Para o autor, Santiago foi um filme que nasceu torto. Esteve parado um tempão. João achava que não tinha solução, porque o problema estava na origem, na captação do material, mas voltou a

Santiago, porque estava em crise, pessoal e afetiva, e achou que o filme poderia ajudar. No final do processo de Santiago,

ele encontrou os filmes que sua mãe fez durante uma viagem à China, em 1966. João encontrou nesse material uma euforia da mãe que o tocou. Tinha de voltara essas imagens. Voltou.

Santiago, por mais que seja sobre o mordomo gay, é sobre o pai.

No Intenso Agora é sobre a mãe. Curiosamen­te, em outro contexto–ficção, Hollywood–,éo que também se pode dizer sobre Zach Snyder. Superman é sobre o pai, Batman Vs. Superman, sobre a mãe. O título é cifrado. Para o espectador, pode não significar nada. Para João – e para você, depois que vir o filme –, significa tudo. Ambos revelam mergulhos profundos – psicanalít­icos? – de João Moreira Salles na história de sua família. São obras que cumprem uma função terapêutic­a. “O Santiago, com certeza. O filme já nasceu assim, para me ajudara vencer um momento que estava sendo difícil. No Intenso Agora pode ter chegado a isso, mas o processo foi outro.”

Inicialmen­te, João não sabia o que fazer com as imagens captadas por sua mãe. Mas havia ali um encantamen­to que o fascinava. A mãe era uma mulher triste. Suicidou-se. Naquelas imagens, João descobriu um outro sentimento, uma alegria. Por que o sentimento comunitári­o da China de Mao mexeu tanto com ela?

“Essa ideia da intensidad­e, do encantamen­to foi que me levou a Maio de 68, porque o movimento estava muito impregnado disso. Maio de 68 foi muito influencia­do pela Revolução Cultural na China. (Jean-Luc)

Godard havia feito A Chinesa

dentro desse espírito. Li muito sobre Maio de 68 e encontrei em quase todos os testemunho­s esse sentimento de plenitude. As pessoas se sentiam vivas. ‘Nunca foi tão bom’. O filme é sobre isso, mas também sobre a ressaca que veio depois. Como seguir vivendo quando o sonho acaba ?” É oque faz a riqueza e a complexida­de da obra.

Mais informaçõe­s sobre o filme e entrevista com o cineasta na pág. C6

Ao falar sobre No Intenso Agora com João Moreira Salles – o filme estreia nesta quinta, 9 –, é inevitável lembrar seu mestre. Eduardo Coutinho foi depurando seu método em busca de resposta para uma questão fundamenta­l– qual é o mínimo que se necessita para fazer um filme? “Coutinho eliminou ação, trilha, roteiro, locação, movimento de câmera, até direção (em Moscou). Mais um pouco e o filme se desfaria. Acompanhei todo esse processo, e tema ver com a descoberta do material de minha mãe sobre a China.”

O que João descobriu naquele material foi uma mãe que não conhecia – cheia de vida diante de uma coisa que era nova para ela. A China de Mao, a Revolução Cultural. “E não só as imagens. Descobri também o que ela escreveu sobre aquela viagem. Comecei a pesquisar e a relacionar as coisas. A China de 66, Maio de 68. O que acontece depois da euforia? Quando tudo isso passa? A pesquisa foi alargando e cheguei ao fim da Primavera de Praga, ao Brasil da ditadura militar. Era uma coisa que conversava muito com Coutinho e que percorre todos esses materiais. Minha mãe filmou a China daquele jeito porque estava encantada com tudo aquilo. Então a questão é – como se filma, por que se filma?”

O próprio João não filmou nada de No Intenso Agora. Utilizase somente de material de arquivo. Esses diferentes materiais – a China de Mao, Paris ocupada pelos estudantes, Praga sob os tanques soviéticos, o Brasil dos militares – levaram-no a refletir. Como as pessoas filmam quando estão felizes? Quando estão com medo? E também – para que servem a imagens? Que uso fazemos dela? “A morte do estudante Edson Luís desencadeo­u todo um protesto, uma movimentaç­ão de rua em 1968. Mas, na realidade, nunca soubemos muito sobre ele, quem era sua família, se tinha uma namorada.”

O cinema muda o mundo? João Moreira Salles é cético. “Se o cinema muda alguma coisa é o próprio cinema.” Coletando diferentes fontes de imagens, No Intenso Agora logra sua unidade por meio do texto. João destaca a importânci­a de seus montadores, Eduardo Escorel e Laís Lifschitz. Cita tanto o primeiro que o repórter brinca – Escorel, no pós-Coutinho, virou seu interlocut­or privilegia­do. Teve um upgrade. “Escorel vai achar graça.” A montagem do filme foi feita por blocos. O texto ia sendo escrito e gravado por João seguindo os blocos. “Se era preciso mudar alguma coisa, não era a imagem, era o texto.” Esse texto o expõe, bem como a mãe. “É uma coisa delicada”, ele admite. “Exponho a minha família.”

João gosta de dizer que virou cineasta por causa do irmão, Walter Salles. “A vocação era do Walter, comecei a fazer (cinema) por causa dele. Não quero dizer que não tenha se tornado visceral, mas nunca foi minha razão de ser.” Ele começou a montar No Intenso Agora em 2012. Logo explodiu junho de 2013. “Não foi nada planejado, mas o filme falava de uma coisa que eu estava vendo na rua. Tudo era de novo muito intenso. Pensava muito no que viria depois. O que veio é o que vivemos agora.” Nesse sentido, No Intenso Agora, por vias meio tortas – que sejam –, tem tudo a ver com o Brasil em 2017. E isso leva João de volta a Coutinho. “A revolução, o povo nas ruas, é esse momento excepciona­l. Coutinho, atraído pelo mínimo, buscava outra coisa. O desafio, na arte como na vida, é encontrar motivos para viver a banalidade do cotidiano.”

 ?? FABIO MOTTA/ESTADÃO ?? O diretor.
A euforia da mãe em filmes que ela fez durante uma viagem à China o tocou
FABIO MOTTA/ESTADÃO O diretor. A euforia da mãe em filmes que ela fez durante uma viagem à China o tocou
 ?? FOTOS VIDEOFILME­S ?? Inquietude­s A China de 66, Maio de 68. O que acontece depois da euforia?
FOTOS VIDEOFILME­S Inquietude­s A China de 66, Maio de 68. O que acontece depois da euforia?
 ??  ?? Ação sem câmeras. Foi usado apenas material de arquivo
Ação sem câmeras. Foi usado apenas material de arquivo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil