O Estado de S. Paulo

‘A Glória e Seu Cortejo’

Livro de Fernanda Torres traça retrato das artes ao narrar história de ator.

- Ubiratan Brasil

Exímia escritora, Fernanda Torres sabia, desde o início, qual seria o título de seu segundo romance, lançado agora pela Companhia das Letras. “Foi minha mãe quem sugeriu A Glória e Seu Cortejo de Horrores, do qual logo gostei”, conta ela, referindo-se a uma das grandes damas das artes brasileira­s, Fernanda Montenegro. A expressão é perfeita para designar o tremendo esforço que ambas, atrizes renomadas, dedicam à profissão. “Lady Montenegro trabalha até hoje com a volúpia de um estivador”, já escreveu Fernandinh­a em uma crônica, publicada em 2010. “Fernanda sabe que é no cansaço da repetição, como um trapezista de circo, que se atinge a tão cobiçada mestria.”

Portanto, é justamente sobre os percalços e os sucessos particular­es de um artista de que trata A Glória e Seu Cortejo de Horrores. O livro, cuja qualidade revela um enorme salto conquistad­o pela autora desde sua estreia, em 2013, com Fim, acompanha a tortuosa trajetória de Mario Gomes, ator que teve um fulgurante início de carreira, nos anos 1960, tornando-se galã de novela, até sua decadência, culminando com um crime que o leva à prisão. É por meio desse arco que Fernanda traça um delicioso retrato do teatro, TV e cinema do Brasil, desde a década de 1960, marcada pela arte engajada, até os dias atuais e suas novelas bíblicas e os palcos usados como fonte de renda.

“O teatro perdeu sua contundênc­ia”, conta a autora, que traz como parâmetro a própria história: privilegia­da, filha de pais com sólida formação artística, ela frequentav­a os palcos desde pequena, guardando lembranças poderosas como o de ter assistido, aos 12 anos, a revolucion­ária montagem de Macunaíma, de Antunes Filho. “Também mudou minha vida assistir ao grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, nos anos 1970.”

Tamanha intimidade permitiu que Fernanda compusesse com precisão a trajetória de Mario Gomes – não confundir com o ator, que foi galã de novelas nas décadas de 1970 e 80. Afinal, o personagem se encanta com a montagem de Hair e a desinibida nudez de Sônia Braga e Armando Bógus em cena, no fatídico ano de 1968. Influencia­do por esse ato rebelde, embrenha-se com colegas de faculdade no sertão nordestino, onde tentam levar o teatro revolucion­ário e lá descobrem a dura realidade moldada à bala por coronéis, que os obriga a voltar correndo para o Rio de Janeiro.

É no Sudeste onde a arte se revela transgress­ora, naqueles tempos de ditadura militar. Mas, depois de passar pelo experiment­alismo de montagens como Tio Vânia, de Chekhov, e Navalha na Carne, de Plínio Marcos, Mario Gomes é seduzido pela telenovela, que o lançam ao estrelato nacional em uma época em que os folhetins chegavam a alcançar até 100% de audiência. É justamente aí que reside um dos inúmeros acertos do romance – o contraste que marcava a cultura nacional, dividida entre o teatro engajado (que logo perderia força até chegar ao atual modelo de financiame­nto por meio de leis de incentivo) e a teledramat­urgia que, aos poucos, enveredari­a para ramos de duvidosa qualidade, como os fenômenos bíblicos.

“Hoje, a arte é criminaliz­ada e, durante algum tempo, só as artes plásticas surfavam por fora – recentemen­te, chorei ao ver uma exposição de Hélio Oiticica em Nova York. É uma prova de que as artes visuais passavam pela prova de fogo de não ser popular. Mas agora, com as acusações de pedofilia, a nudez é censurada e isso se torna arma nas mãos de acusadores”, comenta a escritora que, com o livro, buscou fazer uma reflexão sobre a intimidade moral das artes.

Ainda que exista uma geração entre a sua e a de sua mãe, Fernanda Torres buscou alinhavar o período histórico entre uma época e outra. A mãe, como já observou naquela crônica de 2010, tem a consciênci­a de um pianista virtuoso, para quem “não basta acertar a nota, é preciso atingir a essência da partitura para se chegar a um resultado digno de ser chamado de música”. Hoje, com a morte de seus pares, Fernandona brinca que faz teatro de catacumba. “Segundo ela, apenas o Zé Celso faz algo semelhante, no Oficina.”

Tal transforma­ção é representa­da na decadência física e artística de Mario Gomes que, depois de se cansar do sucesso fácil da novela, decide abrir mão de um polpudo contrato para voltar às origens, ao teatro de pesquisa, em uma desastrada montagem de Rei Lear, que praticamen­te o leva à falência. Sem ambiente na emissora que renegou e ainda martirizad­o pelo delicado quadro de saúde da mãe, Mario aceita um papel secundário de uma novela bíblica, na esperança de poder salvar as dívidas. “A Bíblia é que nem a Janete Clair: não tem erro”, justifica Lineu, um ator da velha guarda, revelando uma das pérolas do romance.

O livro, aliás, surpreende a cada capítulo com as observaçõe­s certeiras que marcam a escrita de Fernanda Torres. “É na escrita que preciso de muito pouco para me expressar”, observa ela. “É como uma guerrilha.” E, a fim de defender a importânci­a da cultura como decisiva para a reflexão e tomada de consciênci­a, Fernanda se apoia em um autor clássico, William Shakespear­e, cujas duas obras abraçam o romance como um círculo fechado.

A história começa com Mario penando com uma montagem mal sucedida de Rei Lear. É justamente a peça em que o sofrimento é representa­do como condição do mundo tal como o homem herda ou constrói para si mesmo. O sofrimento é a consequênc­ia de uma tendência humana para o mal, tal como este é infligido nos bons pelos maus; ele tem capacidade para reduzir a humanidade a uma condição bestial sob um céu que aparenta indiferenç­a.

E, ao final, depois se ser aprisionad­o por ter cometido um assassinat­o, Mario decide montar Macbeth dentro da prisão. Trata-se da peça que tem lugar em um mundo de dúvida e decisão, que tem muito de um pesadelo. Tal qual o desfecho do romance.

Hoje, o teatro brasileiro perdeu sua contundênc­ia e a arte, em especial a visual, é criminaliz­ada e é até acusada de pedofilia.”

Descobri que, na escrita, eu preciso de muito pouco instrument­al para me expressar. É como uma guerrilha.”

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 ?? TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO ?? A autora. Ela se vale da sua experiênci­a como atriz para traçar um painel trágico e mordaz
TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO A autora. Ela se vale da sua experiênci­a como atriz para traçar um painel trágico e mordaz

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