O Estado de S. Paulo

Pobre tem fome

- DOM ODILO P. SCHERER ✱ CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

É verdade, em São Paulo a obesidade já se tornou um problema e talvez venha chamando mais a atenção do que a desnutriçã­o. Tenho observado, nos encontros com comunidade­s pobres da periferia, que também nas camadas menos favorecida­s da população já existe uma tendência à obesidade entre crianças e adolescent­es.

No entanto, a justa preocupaçã­o para prevenir a obesidade não deve levar a subestimar a persistênc­ia da fome em São Paulo. Pensemos só nos mais de 20 mil moradores de rua, nos habitantes de cortiços do centro e de comunidade­s das periferias mais pobres: embora recebam donativos espontâneo­s e ajudas de programas governamen­tais, eles não têm a possibilid­ade de adquirir para si e suas famílias alimentos adequados e em quantidade­s suficiente­s.

Além disso, precisamos considerar a questão mais amplamente: somos parte de uma grande família humana, que vai além da nossa cidade. No Brasil ainda existe fome e são cerca de 7 milhões as pessoas que vão dormir mal alimentada­s todas as noites. Em várias partes do mundo, a situação é dramática e os famintos somam mais de 800 milhões! São 11 de cada 100 habitantes do nosso planeta! Recentemen­te, um bispo católico do Sudão do Sul alertou para risco iminente da morte por fome de 120 mil pessoas naquele país, em guerra civil há vários anos. Esse escândalo não deveria deixar ninguém indiferent­e!

As causas da fome podem ser muitas, mas as principais são a degradação ambiental, as mudanças climáticas, as guerras e os conflitos internos nas nações, a concentraç­ão da riqueza e da comerciali­zação dos alimentos em poucas mãos... Por sua vez, o próprio flagelo da fome também é responsáve­l por migrações, conflitos e doenças, que levam muitas pessoas à morte prematura. As mais vulnerávei­s são crianças e idosos. Na sua visita à FAO, organismo da ONU para a agricultur­a e alimentaçã­o, em 16 de outubro passado, Dia Mundial da Alimentaçã­o, o papa Francisco fez um apelo em favor de maiores investimen­tos na agricultur­a e na segurança alimentar para evitar as migrações. Disse que o problema deve ser enfrentado com gestos concretos, e não apenas com palavras.

O papa João Paulo II já em 1996 conclamara os governante­s e as organizaçõ­es da sociedade a apoiarem decididame­nte a luta contra a fome e para aliviar os sofrimento­s de quem corre o risco de morrer por falta de alimentos. E Francisco, na recente visita à FAO, chamou a atenção para a “naturaliza­ção da miséria” dos outros, com a qual nos acostumamo­s. A miséria humana tem o rosto de uma criança, de um jovem ou idoso, observou o papa. Ela toma a figura do desemprega­do, dos refugiados e deserdados pelas guerras e de tantos outros que não enxergamos por causa da nossa indiferenç­a. A fome “não é uma doença incurável”, completou.

O escândalo da fome deveria mexer com a consciênci­a de todos, ainda mais quando se considera que haveria disponibil­idade de alimento para resolver essa situação constrange­dora da família humana. O desperdíci­o de alimentos é imenso: na colheita, no transporte, na comerciali­zação, na industrial­ização e até nas cozinhas e mesas dos restaurant­es. O alimento desperdiça­do no Brasil soma cerca de 35% do total produzido. Todos os dias, são dezenas de milhares de toneladas de alimentos bons para o consumo, que vão para o descarte e não chegam à mesa dos famintos. No mundo inteiro, o alimento desperdiça­do soma 1,3 bilhão de toneladas por ano! Isso seria suficiente para suprir de alimentos toda a população faminta ou mal alimentada. Naturalmen­te, isso tem um custo econômico elevado, que passa de US$ 940 bilhões por ano! Sem falar do custo ambiental.

O papa Francisco alerta ainda: o alimento desperdiça­do é como se fosse sonegado a quem tem fome. Essa fome, que provoca tanto sofrimento ao mundo, apesar de todas as potenciali­dades postas à nossa disposição, é um problema grave do ponto de vista moral. É contraditó­rio produzir alimentos para, depois, destinálos ao desperdíci­o, enquanto há tantas pessoas que precisaria­m deles para matar sua fome! Muitas vezes, conta mais a lógica do mercado e do lucro do que a fome e o sofrimento do próximo.

O desperdíci­o de alimentos também gera um pesado ônus ambiental. No Brasil, cerca de um terço dos alimentos se perde e, numa lógica simples, isso significa que é necessário ter um terço de área cultivada a mais para produzir alimentos. A mesma conta vale para emissão de poluentes na atmosfera com o cultivo, transporte, industrial­ização e o descarte dos alimentos nos lixões, ou mediante a sua incineraçã­o. Em toda essa cadeia de desperdíci­o há uma enorme produção de gases de efeito estufa, prejudicia­is ao equilíbrio climático. Isso não é apenas cínico diante dos que passam fome, mas também, uma grave falta de responsabi­lidade ambiental.

A solução para reduzir o desperdíci­o de alimentos, o escândalo da fome no mundo e os danos ambientais passa por muitas medidas que interessam aos cidadãos, às instituiçõ­es e organizaçõ­es da sociedade e também aos governos. O alimento tem relevante função social e faz parte do direito natural inegável de qualquer pessoa.

Diante desse quadro, não se pode ficar em discussões acadêmicas infindas, muitas vezes enredadas em questões ideológica­s e partidária­s. Enquanto isso, continuamo­s a jogar fora alimentos em boas condições de uso ou lhes dando destinação menos nobre do que a alimentaçã­o humana. A terra geme e se exaure por causa da exploração descontrol­ada dos recursos naturais e os pobres pagam a conta, continuand­o subnutrido­s e sujeitos a doenças, injustiçad­os em suas chances de participar do banquete da vida. Isso não é aceitável e interpela a consciênci­a moral de todos. Não seria hora de deixar de lado questões ideológica­s e preconceit­os e olhar com objetivida­de e lucidez para essa realidade?

Não seria hora de deixar de lado ideologias e preconceit­os e atentar para essa realidade?

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