O Estado de S. Paulo

Cecília da terra, da água, do fogo e do ar

- Mariana Ianelli MARIANA IANELLI É POETA E AUTORA DE, ENTRE OUTROS, ‘O AMOR E DEPOIS’ E ‘TEMPO DE VOLTAR’

Há aquela famosa foto de 1962 com Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond e Vinicius de Moraes apertados num sofá. Cecília é a única que sorri, e seu sorriso, também famoso, é largo, franco, radiante. Nessa imagem-síntese, ela é mestra da leveza entre os grandes, presença solar entre os senhores das letras.

Discreta, mas sempre atuante, Cecília manteve o lastro da poesia nos vários papéis interligad­os que exerceu no cenário da literatura brasileira moderna como educadora, cronista de jornal e rádio, pesquisado­ra das artes populares, conferenci­sta, tradutora, cidadã, viajante do mundo. Completa, foi poeta dos quatro elementos.

Poeta da terra, do corpo das coisas, Cecília trabalha com a matéria da natureza e da História, reinventa o chão de personagen­s célebres e anônimos, fala de dentro dos lugares por onde passa, que são muitos: de Montevidéu a Karachi, de Nova York a Nova Délhi, de Jerusalém a Buenos Aires, países da Europa, ilhas do Atlântico. De tudo, Cecília inquire o tempo: dos homens e suas cidades, de seus parques, suas casas, seus portos, seus monumentos, suas ruínas, suas flores. De tudo e de todos se fazendo próxima sendo alheia.

Poeta das águas, frequentem­ente. Do estado fluido da memória e dos sonhos, das viagens contemplat­ivas, da lágrima melancólic­a, das navegações no espaço e no tempo, do mar na tradição da lírica portuguesa. Poeta das águas no que elas têm de musical, originário, onírico, ancestral, profundo ou especular. Cecília canta o Mississipp­i, o Tejo, o Nilo, o Ganges. Canta “o caminho dos navegadore­s, juncado de saudades, prantos”, o “marinheiro de mil tormentas”, os barcos da Holanda, a chuva sobre os templos e as árvores, a chuva sobre o mar.

Poeta do fogo? Não de um fogo selvagem ou apoteótico – embora em sua poesia o leitor encontre Roma ardendo ou os clarões da fogueira de Joana d’Arc –, mas uma poeta de fogo lento, de uma inteligênc­ia paciente, solidária, construtiv­a, interessad­a nas transforma­ções de sua época. É a parte revolucion­ária de Cecília, ativa no movimento das reformas pedagógica­s na década de 1930, coordenado­ra da Página de Educação no Diário de Notícias, pioneira na criação de uma biblioteca infantil (três anos depois extinta pelo Estado Novo), no Rio de Janeiro, em incansável diálogo com poetas de outras partes do mundo, como Rabindrana­th Tagore, Jules Superviell­e, Gabriela Mistral. Esse fogo é também a parte solar de uma presença amiga entre seus pares, uma alegria convivial, uma energia empenhada no estudo das artes, do folclore, das línguas e das religiões.

Sobretudo, uma poeta do ar. Poeta dos ventos, do hábitat natural das orações, dos louvores e da palavra cantada, do espírito que se infunde nas coisas e as anima, da atmosfera de cada lugar visitado, do Oriente ou Ocidente. “Pastora de nuvens”, fugidia como seu pasto. Poeta do ar no que nele há de alento, sopro vital, presságio, movimento invisível acima das fronteiras, poeira suspensa no tempo, Eclesiaste­s. Cecília canta “os ventos de agosto, levando tudo”, a “gente da névoa, apenas murmurada”, a brisa que “penteia / a verde seda fina do arrozal”, e se pergunta: “– Pássaro que pelo ar deslizas, / que pensamento­s são os teus?”.

Há pouco mais de meio século da morte de Cecília, essa ausência se deixa assimilar por sua poesia como uma nova significaç­ão: “não tem mais lar o que mora em tudo”. Aquela que se dizia distante ainda em vida, cúmplice dos que já passaram e dos que ainda virão, agora coincide com sua forma alada. Está mais próxima do que nunca, neste século XXI, dos estrangeir­os, exilados, expatriado­s, os (milhões) sem território, permanente­mente em trânsito.

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