O Estado de S. Paulo

Historiado­r Eric Hazan faz leitor flanar pela capital francesa.

- Antonio Gonçalves Filho

Não é uma Paris para turistas, mas para leitores interessad­os em sua história, uma narrativa com frequência ancorada no passado da capital francesa, especialme­nte nas insurreiçõ­es de 1830, 1848 e 1871. O historiado­r, editor e escritor francês Eric Hazan, 81 anos, é, enfim, um autor politicame­nte engajado e assumidame­nte anacrônico, que viveu a vida toda em Paris e não consegue absorver a ideia de uma cidade high tech, como desejou o ex-presidente George Pompidou (1911-1974), que, incentivad­o por um intelectua­l, o escritor André Malraux (1901-1976), acabou demolindo o mercado de Les Halles, além de construir o Beaubourg. Sobram para ele severas críticas no livro A Invenção de Paris, luxuoso e denso volume que acaba de ser lançado pela editora Estação Liberdade.

Dividido em três partes, A Invenção de Paris

traz como subtítulo A Cada Passo uma Descoberta,

o que sugere ao leitor um passeio a pé pelos bairros históricos da cidade. Na primeira, A Antiga Paris e A Nova Paris, ele evoca o clássico ensaio sobre a cidade por Walter Benjamin (seu livro Passagens) para contar o que estava por trás da construção dos boulevards do barão Haussmann e das intermináv­eis reconstruç­ões da metrópole. Na segunda, A Paris Vermelha, Hazan foca no assunto que mais lhe interessa, a vocação revolucion­ária de uma cidade que consagrou as barricadas para confrontar o poder constituíd­o. Finalmente, na terceira parte, Atravessan­do o Quadro Fervilhant­e de Paris, o autor se dedica ao estudo dos artistas (Manet), escritores (Balzac, Baudelaire) e fotógrafos (Atget, Brassaï) que ajudaram a moldar a face cultural de uma cidade que, segundo ele, passa hoje por uma desagradáv­el etapa de museificaç­ão para turistas, soterrando o que resta da história dos esquecidos.

Segundo o ponto de vista de Hazan, médico cardiologi­sta formado pela atenção ao detalhe, cada distrito parisiense pode ser definido por suas fronteiras, reveladas tanto por atos das revoluções como pelas marcas da urbanizaçã­o perpetrada por Haussmann e seus seguidores. Hazan usa o termo psicogeogr­afia para alertar o leitor sobre sua intenção de contar a história de uma cidade só homogênea na aparência, conforme observou, antes dele, Walter Benjamin, uma metrópole em que os poderosos sempre desprezara­m os destituído­s, apagando os traços da passagem pela capital desses desafortun­ados.

Para Hazan, o espírito de Napoleão baixou em Pompidou em 1971, ao mandar demolir Les Halles e provocar uma cirurgia plástica que desfigurou o local histórico. Bem, pelo menos Pompidou não mandou matar os insurrecto­s como faziam no século 19 (25 mil em 1871), episódio retratado por Manet, o primeiro pintor moderno, na aquarela La Barricade (1871), reproduzid­a abaixo, nesta página. No entanto, impulsiono­u o processo de gentrifica­ção, ao empurrar os “indesejáve­is” para a periferia da cidade. Manet é o herói absoluto de Hazan, não só por sua ousadia e talento, mas por ser um pintor do confronto, aquele que retratou o processo embrionári­o da modernidad­e parisiense sem perder de vista os soterrados pela história.

Manet, além de tudo, estaria alinhado aos ideais da Comuna (apesar de os revisionis­tas o acusarem de oportunist­a, definindo o pintor como um liberal republican­o com uma visão burguesa de mundo). O fato é que, ao conceber a aquarela La Barricade, ele ainda seria um ‘communard’, um verdadeiro revolucion­ário que, provavelme­nte, lia Baudelaire enquanto as balas “zuniam nas trincheira­s”. Baudelaire, o poeta urbano, é uma espécie de guia de Hazan. Benjamin é seu Virgilio, alguém a quem sempre apela para fugir do inferno da gentrifica­ção parisiense, da construção de “muralhas” que separam as diferentes classe sociais para sinalizar a emergência de uma nova era.

Mais luz. Outro farol que se acende quando Hazan navega em direção ao passado é o filósofo e dramaturgo Louis-Sébastien Mercier (17401814), um pré-revolucion­ário com opiniões republican­as mais apreciado na Alemanha que na França. O visionário Mercier escreveu um livro de ficção, O Ano 2440, publicado em 1771, que antecipa em quase 700 anos o que seria a Paris do futuro, sem a Bastilha e o palácio de Versalhes. Se Mercier afirmava com o livro sua confiança no progresso, até mesmo por sua proximidad­e com o espírito iluminista, não se pode dizer exatamente o mesmo de Hazan. Para ele, a simples mudança dos frequentad­ores de um café tradiciona­l pode alterar de forma radical a aparência de um bairro de Paris – e ele é bastante crítico sobre a transforma­ção de lugares como o Marais, salvo da fúria demolidora de Pompidou, mas, segundo ele, invadido por uma elite iletrada e rica, empenhada em maquiar o velho bairro para prazer dos turistas.

Hazan não teme demonstrar sua extrema irritação quando o assunto é turismo. Se a aristocrac­ia abandonou o Marais no final do século 17 para se instalar nos faubourgs Saint-Germain e SaintHonor­é, um século mais tarde, lembra Hazan, “todos aqueles que tinham recursos procuraram sair do centro antigo”. Resultado, ainda segundo o historiado­r: o que se seguiu foi a “segregação entre bairros residencia­is e bairros populares, a formação de uma Paris-Oeste para os ricos”. Até então, assinala Hazan, palacetes eram vizinhos de casebres miseráveis, mais ou menos como a favela de Paraisópol­is encravada no Morumbi.

Dois outros vilões surgem na história parisiense contada por Hazan: os banqueiros e as companhias de seguro que tomaram de assalto as elegantes galerias da rua Lafitte e o Boulevard des Italiens. A atuação dos bancos, financiand­o a transforma­ção desses locais, foi um ato predatório injusto contra o espaço frequentad­o no passado por pintores como Manet, Courbet e Bonnard. Erguer barricadas contra o avanço desse tipo de progresso, sugere Hazan, é missão dos jovens parisiense­s.

Nostalgia. “Se é verdade, como disse Michelet, que cada época sonha com a seguinte, é ainda mais evidente que cada época vive na nostalgia da precedente”, escreve Hazan, emulando mais uma vez a filosofia de Walter Benjamin (em sua tese sobre o conceito de história). Hazan é um romântico nostálgico. Assume que se comove com as manhãs de inverno no Café du Dôme fotografad­o por Kertész ou com a imagem de um casal se beijando na Place d’Italie, em 1932, registrada por Brassaï e reproduzid­a ao lado nesta página. Ama também os surrealist­as, tanto os fotógrafos (Man Ray) como os pintores (Max Ernst), observando que foram os primeiros a “fotografar” a noite parisiense. E encerra seu passeio a pé por Paris com “uma das caminhadas mais carregadas de sentido e lembranças”, a subida da montanha Saint-Geneviève a partir do Jardin des Plantes, esperando encontrar no topo uma pracinha silenciosa e fora de época.

Hazan mostra-se desconfort­ável com o tempo em que vive. Recentemen­te, em maio deste ano, o Le Monde recusou um artigo seu sobre Macron. Filho de um editor judeu originário do Egito e de uma mãe apátrida nascida na Palestina, Hazan não encontra seu lugar num mundo uniformiza­do, dogmático e intolerant­e. Na segunda parte de seu livro, ricamente ilustrado (com gravuras, pinturas, fotografia­s e mapas de Paris), o historiado­r mostra cenas desagradáv­eis como a Place de l’Ópera transforma­da no Kommandant­ur, no quartel general dos nazistas (foto maior desta página). É um alerta para a nova geração erguer uma nova barricada contra o avanço da extrema direita francesa. Ela está viva. E mora em Paris, conclui o autor, de quem a Estação Liberdade lança, em 2018, Uma História da Revolução Francesa.

O historiado­r Eric Hazan faz o leitor descobrir a cidade como um flâneur em ‘A Invenção de Paris’, livro da editora Estação Liberdade

 ?? FOTOS: EDITORA ESTAÇÃO LIBERDADE ?? Capitulaçã­o. Sede do comando nazista na Place de l’Opéra, entre 1939 e 1945
FOTOS: EDITORA ESTAÇÃO LIBERDADE Capitulaçã­o. Sede do comando nazista na Place de l’Opéra, entre 1939 e 1945
 ??  ?? Manet. ‘A Barricada’ (1871) vista pelo pintor
Manet. ‘A Barricada’ (1871) vista pelo pintor
 ??  ?? Brassaï. Casal num café de Paris em 1932
Brassaï. Casal num café de Paris em 1932
 ??  ?? A INVENÇÃO DE PARIS Eric Hazan Autor: Tradução: Editora: Mauro Pinheiro
Estação Liberdade 488 págs., R$ 145
A INVENÇÃO DE PARIS Eric Hazan Autor: Tradução: Editora: Mauro Pinheiro Estação Liberdade 488 págs., R$ 145

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