O Estado de S. Paulo

Pensando o impensável

- •✱ BOLÍVAR LAMOUNIER ✱ CIENTISTA POLÍTICO, É SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A E MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

São raros, em qualquer país, os momentos de real concórdia. Em geral, o que se tem é uma paz aceitável, e por vezes precária. As nações menos felizes passam por solavancos sérios e só com muito esforço conseguem evitar que novos solavancos lhes destruam por muito tempo a perspectiv­a da felicidade.

O que me deu coragem para encetar tal divagação foi a recuperaçã­o econômica, por enquanto tênue, e os prospectos algo mais animadores que vão ganhando corpo para 2018. Com os poderosos instrument­os de análise de que dispõem, os economista­s são em média mais otimistas. Acreditam que a recuperaçã­o reaproxima os políticos, desarma os espíritos e repõe o país nos trilhos. Torço para que estejam certos, mas vejo certa utilidade em pensar o impensável. Imaginar, como exercício, que as raízes dos nossos problemas possam ser mais complexas e profundas.

Essas ideias soltas me vieram à mente como subproduto de uma reflexão sobre nossos últimos 25 anos, intercalad­a com premoniçõe­s sobre os próximos cinco ou dez e com uma avaliação do estado atual dos nossos partidos políticos.

O governo Collor, os desacertos iniciais do governo Itamar Franco e a hiperinfla­ção batendo às nossas portas poderiam ter sido um solavanco consideráv­el. Mas conseguimo­s revertê-lo, e fizemos melhor, preparamos o terreno para reformas econômicas importante­s e para uma alternânci­a pacífica no governo: a ascensão de um ex-operário e de um partido ainda imbuído de certo ranço revolucion­ário. Se tivéssemos falhado naquele momento, é óbvio que a sequência previsível dos acontecime­ntos poderia ter sido extremamen­te grave. Teríamos, desde logo, um segundo solavanco – uma polarizaçã­o política acirrada, com reflexos negativos na economia e assim sucessivam­ente. Isso não aconteceu lá atrás, mas aconteceu há coisa de três ou quatro anos, arrastando o País para a recessão e para uma forte elevação do desemprego.

Depois – e temo que esta seja a etapa em que agora nos encontramo­s –, uma situação de anomia, de desesperan­ça e descrença generaliza­da. Reverter tal situação é possível, mas é mais difícil despolariz­ar do que polarizar. E depois da anomia, o que pode vir?

Ousando pensar o impensável, podemos imaginar que a anomia desarmada se arma, ou seja, que se transforma numa sociedade sem pontos confiáveis de poder, sem instituiçõ­es efetivas, sem convergênc­ia no plano dos valores. Em permanente desordem, vale dizer, sem uma ordem normativa digna do nome. A isso se pode apropriada­mente denominar pretoriani­smo.

Como foi que passamos da convergênc­ia dos anos 1990 para a polarizaçã­o dos anos Lula e dela para a anomia dos anos Dilma e Temer? Permitam-me inserir aqui uma observação sobre o eleitorado tucano. Uma parte dele se deixou levar por uma raiva esdrúxula em relação a Fernando Henrique Cardoso, pondo a fermentar dentro do próprio PSDB um começo de anomia. Tal raiva adveio de uma percepção caolha da forma como ele conduziu a transição para o governo Lula. Os que a adotaram se enfurecera­m com a postura de Fernando Henrique quando da transição de governo. Seu jeito cortês e sorridente seria a “prova” de que ele teria traído José Serra e ali estava a festejar a vitória de seu “amigo de esquerda”. Não lhes passou (passa) pela cabeça que Fernando Henrique, como chefe de Estado, estava a descortina­r um horizonte mais amplo, vendo com orgulho o nosso país realizar uma transição difícil, mas civilizada e ordeira.

Outra onda de rancor viria em 2005-2006. Sendo Palocci o ministro da Fazenda, o PSDB preocupou-se em preservar a normalidad­e econômica. Para a parcela enfurecida do tucanato, tratava-se de outra traição. Eram os dirigentes do partido expondo sua natureza “melancia”, verde por fora e vermelha por dentro. Correta, para tal parcela, seria uma postura do tipo olho por olho, dente por dente. Em 2003, marco zero de sua visão polarizado­ra, Lula cunhara a expressão “herança maldita” – a mais grosseira agressão de um presidente a seu antecessor em nossa História republican­a. O “mensalão” seria a oportunida­de de lhe dar o troco, rompendo-lhe a jugular.

No segundo mandato, Lula, se quisesse, ou se soubesse, poderia ter diluído a radicaliza­ção, mas essa, notoriamen­te, não era (não é) sua visão de política, nem combinaria com seu projeto de poder de longo prazo. O que ele fez, como sabemos, foi dobrar a meta: incumbiu Dilma Rousseff de tomar conta da cadeira até sua volta triunfal em 2014. Não percebeu que a sra. Rousseff nutria a ilusão de se tornar uma dama de ferro do nacional-desenvolvi­mentismo.

Alimentand­o-se de tal fantasia, ela produziu uma recessão de quase três anos. Para piorar as coisas, o escândalo da Petrobrás e a sem-cerimônia das empreiteir­as atingiram em cheio os três principais partidos de sua base de sustentaçã­o: PT, PMDB e PP. Trescaland­o maus odores por toda parte em Brasília, a linha de defesa malandrame­nte concebida por Lula – “somos todos iguais” – tornou-se realidade. A sociedade adotou-a como uma descrição fiel de nossa vida política – de todos os partidos e lideranças – e assim uma espessa camada de anomia se superpôs à latente polarizaçã­o.

Como reverter tal situação? Por ora temos um cronograma – as eleições de 2018 –, mas quase nada em termos de cenário, enredo e elenco. Engana-se quem supõe que esse nó possa ser desatado sem alguma convergênc­ia e uma participaç­ão razoável dos partidos políticos. Como operar tal milagre? Difícil sugerir algum caminho, até porque, por enquanto, o que vemos é o outrora presidenci­ável Aécio Neves se comportand­o como um coronel de priscas eras, querendo o PSDB apenas como um partido que possa chamar de seu.

Difícil sugerir algum caminho, quando Aécio se comporta como um coronel de priscas eras

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