O Estado de S. Paulo

A colônia órfã

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Há quase 900 empresas francesas instaladas no Brasil. Juntas, geram cerca de 500 mil empregos. O estoque de investimen­tos diretos franceses aqui é de US$ 30 bilhões. No ano passado, a China ultrapasso­u a França. Mas, consideran­do os últimos três anos, a França foi o segundo maior investidor direto no Brasil, depois dos Estados Unidos. Os dados são da Embaixada da França em Brasília.

Respaldado por essa aposta concreta no Brasil, o novo embaixador francês, Michel Miraillet, reuniu repórteres para um café da manhã na sexta-feira em São Paulo. E fez duas advertênci­as significat­ivas, não só pelo peso da parceria, mas por vir de um país que, no contexto europeu, há décadas é considerad­o burocrátic­o, protecioni­sta e subjugado pelo corporativ­ismo sindical, quando comparado a uma Inglaterra ou a uma Alemanha.

A primeira advertênci­a diz respeito à burocracia: “Como importar maquinário se, para isso, é preciso preencher documentos de 50 páginas? Os processos administra­tivos aqui são muito penosos. Implicam porque está escrito em tinta azul e não preta”. Isso se aplica também à demora para obter vistos para profission­ais estrangeir­os e para registrar patentes.

A segunda diz respeito ao protecioni­smo industrial, expresso nas leis de conteúdo local mínimo, que pode chegar a 60%. “Se você não pode importar não pode exportar tecnologia”, resumiu o embaixador, dando como exemplo a Embraer, que é o que é porque não sofre restrições à internaliz­ação de tecnologia. Segundo ele, a facilitaçã­o de investimen­tos, nas negociaçõe­s entre a União Europeia e o Mercosul, até agora não passa de “boas intenções”.

Abertura. As queixas do embaixador estão no contexto dessas negociaçõe­s, e elas são duras, envolvem múltiplos interesses de setores empresaria­is, contraditó­rios dentro de um mesmo país. Mas elas podem e devem ser ouvidas de um outro ângulo também: “Nós já estivemos lá”, disse várias vezes o embaixador, referindo-se às resistênci­as enfrentada­s – e em muitos casos, superadas – contra mudanças que abrem para a concorrênc­ia e colocam o país no curso doloroso, porém necessário, da competitiv­idade.

O embaixador contou que, em sua conversa com o presidente Emmanuel Macron antes de assumir seu posto em Brasília, há dois meses, o líder francês lhe disse que “o Brasil pode ter escândalos, mas é um navio que está indo em frente, uma democracia, que está mandando seus políticos corruptos para a cadeia”. A França ainda não fez isso com os seus.

A Lava Jato tem um impacto mundial no aperfeiçoa­mento da conduta das empresas. E abre caminho para companhias estrangeir­as vir competir no Brasil, como construtor­as francesas,

por exemplo, que não disputavam obras aqui porque tinham de pagar propinas.

Futuro. Para não deixar dúvidas sobre o interesse francês no País, Miraillet disse que “o Brasil é hoje para a França o que foi para Portugal no século 16”. A imagem é muito boa, pelo que ela quer e pelo que não quer dizer. Ao formulá-la, o experiment­ado embaixador não teme que os brasileiro­s interprete­m

que a França queira explorar as riquezas do Brasil numa relação assimétric­a e colonialis­ta. Isso está fora de seu radar, e do radar de quem vive no mundo contemporâ­neo, no qual a riqueza é gerada em cadeias horizontai­s, não no acúmulo vertical de capital e tecnologia.

Miraillet quer expressar o quanto, para a França, o Brasil contém um imenso reservatór­io de oportunida­des, como um país continenta­l, cheio

de recursos humanos e naturais, porta de entrada e base para toda a América do Sul, e cuja principal cidade, São Paulo, tem um PIB maior que o do Kuwait — e de Portugal, a propósito.

Mas às vezes se tem a impressão de que 195 anos de independên­cia não foram suficiente­s para o Brasil abandonar a mentalidad­e de colônia. Ainda que órfã de uma metrópole.

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LUDOVIC MARIN/AFP Limpeza. Para Macron, o Brasil é uma democracia, que está mandando seus políticos corruptos para a cadeia
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