O Estado de S. Paulo

Mercado editorial

Leitor eletrônico faz 10 anos, mas sem festa

- Bruno Capelas Andre Klojda

Há mais ou menos uma década, uma profecia amedrontou o mercado editorial: o livro de papel, essa invenção de cinco séculos, estava com os dias contados. Seu algoz seria o leitor eletrônico, o tal e-reader, que faria as pessoas trocarem o folhear de páginas pelo toque em botões num aparelho esquisito: Kindle. Lançado há dez anos pela Amazon, ele não foi o primeiro da categoria, mas virou seu sinônimo. Apesar disso, a profecia apocalípti­ca daqueles dias parece longe de se cumprir.

A verdade é que o livro tradiciona­l continua aí, firme e forte. Além disso, os e-readers não fazem parte do cotidiano de muita gente. Segundo a consultori­a Euromonito­r, 131 milhões de aparelhos foram vendidos no mundo desde 2007. Após um pico em 2011, as vendas só caíram (ver gráfico ao lado).

No Brasil, a base instalada desses aparelhos é quase insignific­ante: desde 2010, quando começaram as pesquisas no País, só 76,2 mil e-readers foram comerciali­zados por aqui. O ano em que se comprou mais desses aparelhos por aqui foi em 2015, com 16,2 mil unidades – em cinco anos, porém, menos de 10 mil dispositiv­os serão comprados por brasileiro­s.

Além disso, segundo dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL), os e-books – o conteúdo que motiva a compra desses aparelhos – representa­ram apenas 1,09% da receita das editoras no País em 2016. Ao todo, 2,75 milhões de e-books foram vendidos aqui em 2016, contra 39,4 milhões de livros de papel.

Tropeços. Há diversos motivos para a revolução prometida pelo Kindle – e seus rivais, como o Kobo, da Rakuten, e o Lev, da Saraiva – não ter acontecido. O primeiro deles é que há leitores que simplesmen­te não conseguem se acostumar. “O livro de papel tem uma dimensão artística e aspectos sensoriais, como tato e olfato; o e-reader, não”, diz Thiago Salla, professor de Editoração da Universida­de de São Paulo.

Além disso, por ser um dispositiv­o dedicado à leitura, o leitor eletrônico tem um público-alvo reduzido. São poucas as pessoas que topam pagar caro por algo que não vão usar tanto. Nos EUA, a média de leitura é de 12 livros por ano. No Brasil, o cenário é pior: a média é de 4,96 livros lidos por ano. “A falta de leitores é um problema histórico do nosso mercado e não mudou com o livro digital”, diz Luís Antonio Torelli, presidente da CBL.

Outro fator que mudou a rota do e-reader foi o smartphone, que também ganhou impulso em 2007, com o iPhone. Se no início esses aparelhos tinham poucos recursos e telas pequenas, pouco convidativ­as à leitura, hoje eles se tornaram “canivetes suíços” contemporâ­neos com telas gigantes de até 6 polegadas.

Para Elton Morimitsu, analista da Euromonito­r, os smartphone­s tornaram os e-readers menos atraentes. “O consumidor está disposto a investir em um aparelho que agrega diversas funções”, diz.

É por isso que hoje, em vez de falarem só nos dispositiv­os, as fabricante­s de e-readers preferem

o termo “ecossistem­a de leitura digital”, que compreende também apps para leitura em dispositiv­os móveis e nos PCs. Hoje, segundo Samuel Vissotto, diretor da Kobo na América Latina, 75% do tempo gasto pelos leitores da Kobo é no aplicativo, contra 25% nos e-readers.

É evidente que há diferenças de experiênci­a entre o smartphone e o e-reader. “O celular não foi desenhado para a leitura e oferece distrações aos usuários, como redes sociais e jogos”, diz Arthur van Rest, diretor global de Kindle na Amazon. “É a diferença entre a leitura casual e a leitura dedicada.”. A existência do smartphone, porém, permite que os usuários flertem com a leitura digital, sem precisar firmar um relacionam­ento sério com um leitor eletrônico.

Resistênci­a. Nesse cenário complexo, impression­a o lançamento de novos modelos de leitores eletrônico­s todos os anos. A explicação está no fato de que o usuário do e-reader é um bibliófilo – capaz de ler (e comprar) muitos livros. Isso faz as empresas ganharem não com hardware, mas com conteúdo.

Segundo a Kobo, quem tem ereader compra o dobro de ebooks que aquele que só usa o aplicativo da empresa. Na Saraiva, quem tem um Lev compra 20%

mais livros de papel e e-books. Já na Amazon, quem navega entre diferentes formatos consome três vezes mais livros. “O mercado tinha receio do digital canibaliza­r o livro físico. Aconteceu o contrário: eles se complement­am”, diz Gustavo Mondo, diretor de ecommerce da Saraiva.

Epílogo. No futuro, o e-reader parece ter dois caminhos. Ou segue vivo, como um objeto de nicho, mas rentável o suficiente para se manter de pé; ou será “morto” pelo smartphone. “Ainda acho que o e-reader tem seu tempo de vida, mas a curva de inovação nos smartphone­s e suas telas pode mudar esse jogo”, diz Vissotto, da Kobo. “Se eu tiver um celular com tela realmente boa de leitura, que não canse a vista, e uma configuraç­ão para desligar notificaçõ­es, a experiênci­a será bem parecida com o e-reader.”

Em entrevista ao Estado em 2010, o filósofo Umberto Eco defendeu que o livro de papel seria um objeto eterno, como a colher, o machado e a tesoura. Na época, foi bastante criticado, mas hoje, sua visão integrada (e nada apocalípti­ca) parece mais próxima da verdade. Por ironia do destino, quem deveria “matar” o livro de papel pode, na verdade, morrer primeiro que ele. Sinal dos tempos.

 ?? DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO ?? Líder. Lançado em 2007, o Kindle, da Amazon tem 61% do mercado global, segundo a consultori­a de mercado Euromonito­r
DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Líder. Lançado em 2007, o Kindle, da Amazon tem 61% do mercado global, segundo a consultori­a de mercado Euromonito­r

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