O Estado de S. Paulo

UM LIVRO ENTRE A FLUIDEZ E A CASTRAÇÃO

- Flávio Ricardo Vassoler ✱ É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM ESTÁGIO DOUTORAL NA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA)

Stella Manhattan, de Silviano Santiago – escritor que venceu recentemen­te o prêmio Jabuti de Romance com Machado, uma ficção sobre os últimos anos de Machado de Assis –, é um romance híbrido e metacrític­o, uma obra que prenuncia, projeta e embaralha os caminhos de sua própria recepção. Sulcando a narrativa pelas mais diversas veredas, deparamos com digressões (ou melhor, com ramificaçõ­es) que nos incitam a imaginar a argila da ficção em pleno processo de moldagem. Conforme nos revela uma das vozes narrativas (e/ou ensaística­s) do livro, “como são falsos os romances que só transmitem a continuida­de da ação, mas nunca transmitem a descontinu­idade da criação”.

A forma polissêmic­a de Stella Manhattan se comunica a (e é municiada por) seu conteúdo ontologica­mente andrógino e ambíguo: o protagonis­ta Eduardo da Costa e Silva, que também vivencia a alteridade de Stella Manhattan, é um funcionári­o de baixo escalão na embaixada brasileira de Nova York, durante o período de nossa última ditadura militar. O exílio de Eduardo Manhattan contra a homofobia de sua família foi mediado pelo coronel Valdevinos Vianna, amigo do pai de Stella da Costa e Silva e adido militar junto à embaixada – à noite, o coronel veste uma farda de couro e esgueira sua homossexua­lidade coercitiva­mente enrustida pelos recantos sadomasoqu­istas da Big Apple.

Vizinho de Eduardo, o cabeleirei­ro cubano, homossexua­l e anticastri­sta Francisco Ayala, o Paco, acredita (ele crê porque é absurdo?) que a religião institucio­nal lhe possibilit­a lidar com o pecado de maneira a acolhê-lo.

Professor da Columbia University, membro de uma célula guerrilhei­ra com ramificaçõ­es em Nova York e ex-colega de Stella no curso de Letras no Rio de Janeiro, o bissexual Marcelo já fora bem casado, mas agora, além de tramar contra a ditadura, ele sai com Rickie, com quem Eduardo se envolveu e por quem Stella está apaixonada.

Também professor da Columbia University, anticomuni­sta encarniçad­o, defensor da ditadura militar no Brasil e paralisado em sua cadeira de rodas, Aníbal só consegue se excitar enquanto vê sua bela esposa Leila, da janela de seu apartament­o, a caçar homens viris pela Quinta Avenida.

Vemos, assim, que Stella Manhattan desdobra a identidade fluida das personagen­s – a fluidez como ontologia. Mais uma vez, uma voz metacrític­a (e política) em meio à obra procura devassar a ambiguidad­e como a medula (a semente, o sêmen) do ser: “Aparenteme­nte, o protagonis­ta do romance se divide em dois: o jovem Eduardo e a atrevida Stella. Na verdade, se divide em três, já que importa é o lugar da intersecçã­o de um no outro, do Outro no Um. Importa o eixo cilíndrico da dobradiça que destranca e vai abrindo a porta Stella até então reprimida pela rigorosa esquadria de nome Eduardo. Computa-se o três – a ‘diferença simétrica’ entre dois, como se diz na teoria dos conjuntos, entre Eduardo e Stella”.

Em mais uma das capilarida­des desse romance com vários centros e nós a serem (des)atados, desponta uma reflexão peculiar sobre o sentido da arte em

meio a uma sociedade formada, conformada e deformada pelo reinado de tudo aquilo que precisa ser útil. Assim, em mais uma tomada de posição política (e metacrític­a), uma das vozes romanescas nos diz que “a arte não é nem pode ser norma, é energia desperdiça­da mesmo, é alguma coisa, uma ação, por exemplo – não importa agora a questão da qualidade –, que a energia humana produz num rompante e que transborda num vômito pelo mundo do trabalho, pelo universo do útil, com a audácia e a inépcia de alguém que, ao despejar leite numa xícara para se alimentar pela manhã, deixa que a maior parte do líquido se desperdice pela mesa”.

Com um ímpeto ecumênico a transcende­r a dicotomia dogmática da guerra fria – precisamen­te o contexto histórico pelo qual se esgueira Stella Manhattan –, o narrador/ensaísta nos diz que, “dentro da sociedade atual, capitalist­a ou comunista, a única maneira de se revoltar contra o regime de trabalho, contra o elogio do trabalho a todo custo, da competitiv­idade, da meritocrac­ia, é fazer uma arte que seja desperdíci­o de energia”.

Ora, o corpo que chega ao orgasmo, em suas várias metamorfos­es, é, antes de mais nada, o corpo que, em nossa sociedade, precisa trabalhar. O corpo que chega ao orgasmo artístico dá à luz uma atividade desprovida de utilidade efetiva, uma atividade como um fim em si mesmo – a arte, então, conteria um germe intrinseca­mente rebelde que poderia projetar a imagem de uma sociedade emancipada, a imagem de uma sociedade liberta da coerção do trabalho, a imagem de uma sociedade que estimulari­a (e enalteceri­a) o desperdíci­o de energia, em suas várias metamorfos­es, como a expressão da(s) busca(s) por sentido(s).

É assim que Stella Manhattan desponta como um romance contestado­r e atual, sobretudo se considerar­mos algumas tendências neoautorit­árias que pretendem fardar e amordaçar a fluidez da diferença.

STELLA MANHATTAN Autor: Editora:

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MARCOS DE PAULA/ESTADÃO Jabuti. Silviano Santiago, laureado em 2017
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