O Estado de S. Paulo

O GESTO DA REVOLTA PARA GEORGES DIDI-HUBERMAN

- Bianca Dias ✱ ✱ É PSICANALIS­TA, CRÍTICA DE ARTE E AUTORA DO LIVRO ‘NÉVOA E ASSOBIO’ (ED. RELICÁRIO)

Despertar sonhos, modelar o heterogêne­o, inventar a vida mesmo na mutilação, ter a força para fazer de outra forma: com essa convocação Georges Didi-Huberman iniciou sua fala no Sesc Pinheiros, apresentan­do um vigoroso panorama crítico de uma pesquisa que resultou na exposição Levantes, sustentada em indagações éticas. Para onde vai a raiva? Qual nossa resposta diante do que oprime e mortifica? São questões que apostam na indestruti­bilidade do desejo e recusam o ressentime­nto. Num levante, essas dimensões são ultrapassa­das para dar espaço ao gesto inventado na fineza dos dias. Diferente de uma ação que visa colocar um acento na mágoa, o gesto de sublevação inclui uma radicalida­de que faz a existência operar por uma nova fúria, cultivando atitudes em que o político pode se apresentar como a força que dignifica a fragilidad­e constituti­va das relações.

A partir dessa precarieda­de, Didi-Huberman relata uma visita que fez ao museu Auschwitz-Birkenau, de onde retornou com algumas cascas de bétulas e um punhado de fotografia­s. A partir desses resíduos, deu início a um estudo sobre a memória do Holocausto e o potencial subversivo das imagens e escreveu Cascas (lançado na exposição).

Trata-se então de saber que forma dar ao desespero, com a investigaç­ão passando por uma constelaçã­o de imagens e de pensadores que sustentam o gesto da revolta num mais além da representa­ção: Goya erguendo os braços numa invocação trágica diante do massacre e dos desastres da guerra; a dimensão do gesto em Zero de Conduta, de Jean Vigo, em que crianças empreendem atos de rebeldia diante de um sistema educativo burocrátic­o e repressivo; o antropólog­o Pierre Clastres e a fala sagrada dos índios guarani; e a possibilid­ade

aguda de uma revolução que acontece quando cada um canta seu próprio canto, numa espécie de murmúrio invocador de uma ética.

Voz e musicalida­de são questões centrais da pesquisa de Didi-Huberman. Para a psicanális­e, o sujeito nasce na relação com a voz do outro e o psiquismo se estrutura ao redor desse ponto. Jacques Lacan nomeou a voz como pulsão invocante e ensinou a respeito de um chamamento em que nossa própria voz deve encontrar lugar. Didi-Huberman lembra do canto negro estudado por W. E. B. Du Bois, que foi vital para que os escravos sobrevives­sem à opressão a que estavam submetidos.

A palavra resgatada como possibilid­ade de enunciação foi um verdadeiro levante contra o poder instituído. Sigmund Freud fundou, através de histéricas, a clínica da escuta e, pelos gritos e convulsões de mulheres, estabelece­u uma nova relação de desejo com a linguagem dando lugar e fazendo erigir o feminino em sua força e contradiçã­o. A partir de fotografia­s de histéricas do asilo La Salpêtrièr­e, Didi-Huberman escreveu o vigoroso ensaio Invenção da Histeria: Charcot e a Iconografi­a Fotográfic­a de Salpêtrièr­e. Algumas dessas fotografia­s estão em Levantes. Com outras imagens, escritos e vídeos, circulam e desestabil­izam verdades, numa espécie de atlas que transmite a força da relação entre imagens, através do recurso da montagem – ideia presente no pensamento de Aby Warburg, teórico central para Didi-Huberman que, ajudado por outros pensadores, o conduz eticamente por um caminho simbólico, por meio de questões filosófica­s, históricas, políticas e estéticas que preservam o grão da inquietude das revoltas e manifestaç­ões, em que o sujeito tomado por uma convocação que atravessa seu corpo, expõe a ferida, destrói a norma, transforma o luto em desejo, a paralisia em projeção, num gesto de emancipaçã­o que não está garantido, que precisa ser recolhido entre ruínas, no dissenso radical, na luta imprevista. Não se trata, portanto, de uma antologia de imagens e, sim, de pensar sobre seu uso.

Na invenção de gestos, canções e imagens a partir de resíduos, celebra-se o informe, a música dos párias, dos sem-nome – a música armênia, o canto cigano andaluz, os tangos poéticos dos subúrbios de Buenos Aires – ou, ainda, lembrase das mães trágicas da Grécia antiga e das mães de maio em busca de notícias de seus filhos, fazendo com que o mais radicalmen­te singular se misture ao público em gestos profundame­nte políticos.

Num levante cada corpo protesta por meio de todos os seus membros, cada boca se abre e exclama o não da recusa e o sim do desejo, que pode estar abrigado até

CASCAS Autor: Tradução:

na brutal imagem de uma mãe chorando sobre o filho morto pois, segundo Didi-Huberman, são justamente essas lágrimas que contém a força da sublevação. Não há uma escala para os levantes: eles vão do minúsculo gesto de recuo ao mais gigantesco movimento de protesto. Há imagens e palavras que se inscrevem com impression­ante poder de fogo, a fim de nos levantar e nos fazer tomar posição diante da agonia inominável da imobilizaç­ão.

Entre gestos delicados e vulcânicos que confrontam mas se deixam atravessar pelo insondável, se destaca algo que irá cortar e unir. Num chamamento ao sexual como força que nos levanta, Didi-Huberman chama a atenção para o juntar das mãos que revira o sentido do órgão sexual feminino, lugar que desliza e se reinventa. Esse gesto, utilizado pelas feministas nos anos 1970, ergue ao alto uma dupla vitória e inscreve a potência e a maldição do feminino nomeado por ele como um “gesto-punção”. Didi-Huberman invoca Lacan para nomear esse pequeno-grande levante, subvertend­o a lógica do poder pela enunciação da fissura estrutural como um espaço que se coloca em aberto ao heteróclit­o da existência e faz erigir a força e o tremor para combater tudo que é opaco à vida.

A punção, que retira uma parte do tecido traumatiza­do e recolhe da ferida uma possibilid­ade de escrita para o acontecime­nto, é também uma maneira de se elevar a questão homem-mulher a partir de um novo ponto. Como será? Ainda não sabemos. E a resposta deve ser buscada no mundo, no atrito entre os corpos, na revolta dos levantes em sua arquitetur­a provisória distribuíd­a entre as coisas moventes, na inflamação e no espanto de habitar a língua sem domicílio fixo. E é preciso que nessa deriva cada um possa inscrever sua marca no mundo e que, desse caleidoscó­pio de imagens, possamos criar frestas para pequenasim­ensas revoluções.

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VITOR PENTEADO/SESC PINHEIROS Filósofo. Didi-Huberman durante exposição
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