O Estado de S. Paulo

O TEATRO, O SOL E O MUNDO

Dois livros têm o palco como tema, um sobre os 50 anos do grupo francês Théâtre du Soleil e outro sobre a arte da performanc­e

- ✱ É ESCRITOR E FILÓSOFO, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP Rodrigo Petronio

Patrice Pavis e Béatrice Picon-Vallin são autores nucleares para todos os estudiosos e artistas do teatro e das artes performati­vas. Enquanto Pavis assina obras indispensá­veis como o Dicionário de Teatro (1987) e Análise dos Espetáculo­s (2005), Béatrice é considerad­a uma das maiores especialis­tas mundiais na obra do encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940).

Duas casas editoriais que protagoniz­am a difusão das artes espetacula­res, a Perspectiv­a e as Edições Sesc acabam de trazer ao leitor brasileiro duas obras essenciais: O Dicionário da Performanc­e e do Teatro Contemporâ­neo de Pavis e O Théâtre du Soleil: Os Primeiros Cinquenta Anos, estudo tão exaustivo quanto possível da trajetória da companhia criada e dirigida pela encenadora Ariane Mnouchkine.

Ao lado de Judith Butler, Hans Ulrich Gumbrecht, Eve Sedgwick, Peggy Phelan, Shoshana Felman, Marvin Carlson e do pioneiro Richard Schechner, Pavis tem se destacado como um dos principais pensadores das artes performati­vas. Desde sua publicação, este dicionário tornou-se uma das melhores ferramenta­s para estabiliza­r um dos campos mais movediços e complexos das artes contemporâ­neas: os performanc­e studies.

O conceito de performanc­e surge atrelado à filosofia da linguagem e à teoria dos atos de fala de Searle e Austin. Enunciados constativo­s são enunciados que descrevem estados de coisas da realidade (Wittgenste­in): “O menino pegou a bola”. Enunciados performati­vos são aqueles que produzem efeitos reais nesta mesma realidade: “Eu juro que devolverei o seu livro”. Um juramento não é uma mera descrição. Ele produz uma vinculação, um compromiss­o entre os falantes.

Nesse sentido, a performanc­e pretende-se sempre produtiva e não apenas descritiva. Performar não é representa­r. Performar é sair da clausura da representa­ção (Derrida). Representa­r é descrever realidades preexisten­tes. Performar é produzir novas realidades. A performanc­e transcende as dicotomias entre arte e não arte, entre ficção e realidade, entre real e teatral. Engloba todas as atividades humanas que produzam compromiss­os entre os envolvidos. Não por acaso, embora a antropolog­ia seja a pedra angular de sua constituiç­ão, os performanc­e studies são um campo radicalmen­te interdisci­plinar. Compreende­r os signos, motivações, pressupost­os, situações e significad­os flutuantes das ações, instituiçõ­es, cultos e ritualizaç­ões do ser humano é uma das bases para a reflexão e a criação de performanc­es.

A performanc­e e o teatro contemporâ­neos também conferem um especial destaque a alguns conceitos e dispositiv­os menospreza­dos pela tradição: a relação entre humano e não humano, a constituiç­ão de atmosferas, a sinestesia, aspectos expressivo­s do corpo, utilização de arquivos vivos, imersão, etnografia, intertextu­alidade (Julia Kristeva), presentifi­cação, liminarida­de, as descoberta­s dos animal studies, a teoria ciborgue (Donna Haraway) e os horizontes abertos pelos estudos acerca do pós-humano (Katherine Hayles e Cary Wolfe).

Pode-se compreende­r a performanc­e e o teatro contemporâ­neos também como herdeiros de algumas tradições do século 20. Primeira: a relação teatro-antropolog­ia presente em Artaud, Grotowski, Barba, Brook e Mnouchkine. Segundo: os happenings e as vanguardas dos anos 1960. Terceiro: as teorias da descoloniz­ação, a etnologia e os estudos intercultu­rais, em conexão com a teoria queer e os estudos de gênero (Beatriz Preciado e Judith Butler). Quarto: o teatro pós-dramático desenvolvi­do em consonânci­a com a teoria clássica de Hans Thies-Lehmann.

Distancian­do-se de sua formação inicial em semiologia, Pavis não esconde suas preferênci­as teóricas atuais: Deleuze, Derrida, Barthes. E a despeito de ser um dicionário, o autor unifica os verbetes por meio de uma perspectiv­a crítica de fundo. O alvo tem um nome: globalizaç­ão. A cultura da performanc­e teve o mérito de ampliar as potenciali­dades adormecida­s por noções cristaliza­das de teatro e de teatral. Contudo, essa abertura teria dado ensejo a um fenômeno negativo: a ascensão de um padrão global e homogêneo de espetáculo.

O intercultu­ralismo e a inter mi dia lida de, ou seja, o hibridismo de culturas e o hibridismo de tecnologia­s de mediação, seriam essenciais­à performati­vidade. Trata-sede uma aliança etno-tecno, segundo Gó mez-Peña.Essasdu as frentes teriam surgido como respostas aduas demandas contemporâ­neas em relaçãoàar­te:re presentara diversidad­e cultual e incorporar novas tecnologia­s. Ao contrário de promover uma diversific­ação da experiênci­a artística, para Pavis essa dupla demanda teria submetido o teatro a um padrão de circulação global do mercado internacio­nal de arte. O espetáculo foi espetacula­rizado, para usar o conceito de Guy Debord.

Como resposta, surgiu uma necessidad­e cada vez maior de demarcação de grupos. Uma nostalgia das experiênci­as e identidade­s comuns. Uma valorizaçã­o de etnias, de gêneros, de nacionalid­ades, de grupos, de classes. Segundo Pavis, as teorias pós-coloniais de autores como Gilbert, Appiah, A ms elle,Tompk in seBhabha realizam acrítica desse modelo standard, globalista e uniformiza­do, que o teatro intercultu­ral e as artes performati­vas acabaram reproduzin­do. Contudo essas teorias não conseguira­m abrir novos horizontes e criar novos padrões de produção para os artistas.

A análise de Pavis é um excelente exercício de diagnose da arte na atualidade, mas decepciona quando apl ica daàaferiçã ode valore quando situada no cenário político-cultural da atualidade. Se uma obra-prima como o Mahabharat­a de Peter Brook é um produto da diluição das culturas em uma economia globalizad­a, o que dizer da devastação cultural, política e estética de um mundo dominado pelos neonaciona­lismos, pela histeria antiglobal­ista e pelos discursos neofascist­as? O mesmo pode-se dizer dessas apreciaçõe­s de Pavis, confrontan­do-as com o trabalho de Mnouchkine.

A partir da reconstruç­ão cronológic­a de Béatrice, podemos delinear o trabalho do Soleil em torno de uma constelaçã­o de ideias-matrizes: a recusa do distanciam­ento do teatro épico de Brecht, a busca de linguagem autenticam­ente teatral, inspiração em formas rituais-cerimoniai­s arcaicas e de outras culturas, desenvolvi­mento de uma autoria coletiva, o recurso das transposiç­ões, o uso de máscaras, o diálogo com tradições populares, o antipsicol­ogismo, o hiper-realismo, a interação com o público, os documentos vivos, e, acima de tudo, um mito: o Oriente.

Negara legitimida­de dessas criações transcultu­rai sé negara possibilid­ade de queto da cultura se cria e se recria por meio de infinitas disseminaç­ões e apropriaçõ­es (Derrida). Pavis tem consciênci­a disso. O problema é que ele assume uma perspectiv­a pouco antropológ­ica para abordar o fenômeno essencialm­ente antropológ­ico do teatro e da performanc­e em um mundo globalizad­o. Dessemo do, acabas endo muito c rí ticoà pós-modernidad­e, ident ifi cadaà cultura globalizad­a, mas pouco crítico ao conceito mesmo de pós-modernidad­e, um dos conceitos mais controvers­os e vazios do pensamento contemporâ­neo.

Da a ut obi ogra fiaà autor reflexivid­ade, da corpo reida deà desconstru­ção, da e scrit uraàexcent­ricidade, da fronteiraà­inst alação: muitos são as derivas e os devires que nos conduzem pelo teatro de imagens de Mnouchkine e ao mundo do teatro e da performanc­e pelos verbetes de Pavis. O mundo talvez seja mesmo um texto infinito, cheio de costuras, dobras e fissuras, como querem os artistas e teorizador­es do teatro e da performati­vidade. Por isso, um corpo nunca é nu. Mesmo um corpo nu se veste e se reveste de um signo. E agora, finalmente, ninguém pode criticara performanc­e do M AM por falta de entendimen­to doque uma performanc­e venha a ser.

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FOTOS: MICHÈLE LAURENT/THÉÂTRE DU SOLEIL Fantasia. Cena de ‘Os Náufragos da Louca Esperança’, inspirada em Jules Verne
 ??  ?? Fugaz. Cena do espetáculo ‘Os Efêmeros’, primeira peça encenada pelo grupo no Brasil
Fugaz. Cena do espetáculo ‘Os Efêmeros’, primeira peça encenada pelo grupo no Brasil
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Recente. Cena de ‘Une Chambre en Inde’, do Théâtre du Soleil
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FÁBIO MOTTA/ESTADÃO Solar. A encenadora Ariane Mnouchkine
 ??  ?? THÉÂTRE DU SOLEIL: OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS Autora: Béatrice Picon-Vallin
J.
Tradução:
Guinsburg
SESC/ Perspectiv­a 368 págs., R$ 129 Editora:
THÉÂTRE DU SOLEIL: OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS Autora: Béatrice Picon-Vallin J. Tradução: Guinsburg SESC/ Perspectiv­a 368 págs., R$ 129 Editora:
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