O Estado de S. Paulo

‘Perdemos três primeiros bailarinos e um solista’

Com 36 anos de Municipal no Rio, a diretora artística enfrenta uma das piores crises da casa

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Os 36 anos que Ana Botafogo viveu no Theatro Municipal – antes como primeira bailarina e há dois anos como diretora artística – não foram suficiente­s para ajudá-la a lidar com a crise que a instituiçã­o passa nos últimos tempos. Com salários por meses atrasados pelo governo do Rio, o corpo do balé e os funcionári­os do Theatro se viram às voltas com um ano de indefiniçã­o na programaçã­o – e até sem dinheiro para chegar ao trabalho. Há duas semanas, o espetáculo O Lago dos Cisnes, programado para estrear no fim de outubro, foi cancelado. A decisão foi de parte dos funcionári­os do Municipal. Não se sabe exatamente quanto é devido. “Não é só o Theatro. Quase 100 mil pessoas no Estado ficaram sem salário. Fiquei abalada, fiquei triste. Porque assim, você não pode exigir quando você não pode dar nada. Se o governo não dá, se o que a gente precisa não chega. Me senti com esperança, mas desanimada em muitos momentos, porque me via incapaz de poder dizer, a luz está ali”, explica ela.

Durante o pior período da crise, Ana chegou a perder três primeiros bailarinos e um primeiro solista. “Minha linha de frente do Theatro Municipal ficou capenga, mas pelo menos eles estão dançando em outros lugares, estão vivos”, afirmou à repórter Marcela Paes. Aos 60 anos e ainda na ativa como bailarina – dançando em alguns espetáculo­s (“que exigem menos”) – ela agora também dá palestras sobre sua trajetória profission­al e pessoal. “Queria muito ter filhos, a ideia era ter filhos um pouco mais velha, porque eu me casei a segunda vez já com 36 anos. Mas fiquei viúva e continuei dançando. A vida acabou me levando a ter essa carreira longa, não foi planejada, mas foi acontecend­o e eu adorei. É óbvio, porque eu sempre fiz o que amava fazer”, explica a carioca, um pouco antes de sua fala na Casa do Saber em São Paulo.

Como está a situação financeira do Theatro?

Ela ainda é crítica. Nós, do Theatro Municipal, conseguimo­s melhoras, mas não somos só nós que estamos nessa penúria, são 200 mil funcionári­os do Rio. Na realidade, o número de pessoas que ficou sem esse salário chega a somar quase 100 mil...

Vocês fizeram campanhas de arrecadaçã­o, não?

Nós fizemos uma manifestaç­ão pública na Cinelândia, na frente do Theatro e foi super emocionant­e. As pessoas aderiram de verdade, a gente precisou até fechar as ruas de tanta gente que teve. As pessoas gostam da arte, elas sabem que isso faz falta também na vida delas. Eu acho que a arte faz falta na vida de um povo que já é sofrido, a gente precisa ter arte. Recebemos alimentos não perecíveis e montamos muitas cestas básicas.

Como você consegue motivar pessoas que estão há meses sem receber?

A gente fala com os bailarinos, tenta animar, mas é difícil. Eu não tenho argumento. Você não pode exigir quando você não pode dar nada. Eu fiquei abalada, fiquei triste. Se o governo não dá, se o que a gente precisa não chega. Eu tentava dar uma palavra de alento, dizer que estávamos ali por uma boa causa.

Você sentiu diferença de ânimo nos ensaios?

Com certeza. Houve momentos de alguns bailarinos terem crise de choro, de estarem desesperad­os, pedirem para ir respirar. Choravam de angústia, essa é a verdade. Vivemos um ano de desespero.

O que você acha da situação geral do País?

Acho que a gente nunca teve num momento tão remexido politicame­nte. Tem um lado muito interessan­te da conscienti­zação do povo, da luta por um país mais digno e menos corrupto. Os jovens, sobretudo, começaram isso. É uma questão de o Brasil tomar consciênci­a e de sermos um País sério, para que nunca mais alguém diga, como disse o (Charles) de Gaulle: o Brasil não é um País sério. Isso me dói muito.

Você poderia ter escolhido uma carreira no exterior, mas voltou para o Brasil. Se arrepende disso de alguma forma?

Não. Voltei pro Brasil e primeiro fui dançar no Guaíra, depois fui pra uma companhia no Rio. Tudo que eu queria, no início da minha carreira, era entrar no Theatro Municipal e dançar os grandes clássicos. Depois, tive algumas oportunida­des de sair, mas conversei com meu grande ídolo, a Márcia Haydée. Ela, que fez carreira na Alemanha e era diretora da Companhia, me disse que eu poderia fazer a diferença no Brasil. Aí me convenci.

Isso te ajudou a consolidar a sua carreira?

Acho que sim. Comecei a ter convites internacio­nais para dançar fora do país e achei que era muito prático poder sair, dançar e voltar. Eu tinha um lar. E talvez hoje, quando as pessoas dizem, ‘ai, você é tão conhecida! Por que é que o seu nome é o mais conhecido?’, seja porque eu tenha tido essa constância. Nunca deixei de estar aqui para o nosso público.

Perdeu bailarinos na crise? Nós perdemos três primeiros bailarinos e um primeiro solista. Não tínhamos programaçã­o prevista nos primeiros meses do ano e os bailarinos disseram ‘o que é que nós vamos fazer?’. Minha linha de frente ficou capenga, mas pelo menos eles estão dançando em outros lugares, estão vivos.

Fora esse problema específico, o que falta para manter os novos talentos do balé no Brasil? Olha, o que falta é exatamente uma política de constância de espetáculo­s. Na realidade, os bailarinos não almejam só ir pra fora, eles vão pra fora porque eles não têm trabalho aqui.

Como foi a transição de bailarina para diretora artística do Theatro Municipal do Rio?

Eu virei diretora do balé em 2015, mas tinha ainda muita coisa pra dançar. No princípio eu não queria ser diretora porque já tinha muitos compromiss­os, mas resolvi aceitar e deu certo. Em 2016, eu comecei a diminuir meus trabalhos como bailarina. Passei por uma época quando tive quase certeza de que não queria mais nem fazer aula de balé. Mas é impossível parar totalmente.

Você ficou mal sem dançar? Sim, meu físico se ressentiu, o corpo está habituado. Um corpo de 36 anos dançando. À noite eu comecei a achar que não tinha gasto energia durante o dia. A vida toda dormi bem, mas comecei a ter problemas. Claro, era a falta das minhas seis horas de exercício. Não dá para abandonar de todo. Ainda faço aula todo dia.

Diminuir o ritmo te deu mais tempo para vida pessoal?

Ao longo da minha carreira, achava que tinha tempo suficiente, mas não era o bastante. Já hoje em dia acho que tenho um pouco mais de tempo pra família, sobretudo para os meus pais. Se bem que como diretora, tenho outras responsabi­lidades também. Achei que fosse ficar mais fácil, mas mudam os problemas. É só um outro olhar.

A vida de bailarina é muito calcada no físico. Como você lida com o envelhecim­ento? As heroínas dos balés clássicos são jovenzinha­s, mas existe essa licença poética. Com 30, 40, 50 anos você ainda pode interpreta­r alguém de 15. Isso ajuda. Tive sorte porque eu sempre fui mignon e aparentava ser muito mais jovem do que na realidade eu era. Mas o que eu posso fazer? Me considero corajosa para enfrentar uma cirurgia, mas não uma plástica. Não sei, mas tenho um pouco de medo disso.

Já se sentiu insegura pela idade em algum trabalho?

Acho que fui tão longe nessa carreira justamente por lidar bem com isso. No início eu era a mais novinha da turma, eu era uma jovem bailarina. Um dia, olhei e pensei: ‘cadê meus amigos?’ A minha geração?’ Eles começaram a parar muito cedo. Eu via as bailarinas mais jovens e pensava que elas deviam me achar muita mais velha, mas lidava bem com isso. Lidava de igual pra igual.

O ambiente do balé clássico tem fama de ser super competitiv­o. É assim mesmo?

Muito. Existe uma competição e hoje em dia cada vez a técnica está mais apurada. A competição deveria ser uma emulação, ou seja: ela faz bem, eu também quero fazer tão bem! Nunca tive problema porque sempre mantive na cabeça o fato de que cada um é diferente. Se surgia algum problema, ia lá e resolvia. Nunca fui de ficar falando. Sou muito do trabalho.

‘Queria ter filho com 40 e, se tivesse acontecido, eu teria parado de dançar’

Você pensava que iria continuar por tanto tempo? Achava que iria parar cedo, que seria como o Pelé. Mas aconteceu que não tive filhos. Eu queria muito ter filhos, a ideia era ter filhos um pouco mais velha porque casei a segunda vez já com 36 anos. A ideia era ter filho com 40 e, se tivesse sido assim, eu certamente teria parado de dançar.

Por que abandonou o plano? Eu fiquei viúva pela segunda vez. Por isso eu continuei dançando. Então assim, a vida acabou me levando a ter essa carreira longa, não foi planejada, mas foi acontecend­o e eu adorei. É óbvio, porque eu sempre fiz o que amava fazer.

É algo com o qual você convive tranquilam­ente?

Sim. Na época eu sofri, fiquei muito triste, claro, era um sonho, mas isso já foi resolvido, está pra trás. Eu realizei outros. Me realizei muito profission­almente.

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IARA MORSELLI/ESTADÃO
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