O Estado de S. Paulo

No palco, o Michelange­lo da música clássica

‘Orfeo’, de Monteverdi, é apresentad­o na Sala São Paulo

- João Luiz Sampaio ESPECIAL PARA O ESTADO

O maestro Leonardo García Alarcón não precisa de muito tempo para responder à pergunta sobre a importânci­a do compositor Claudio Monteverdi (1567-1643). Do outro lado da linha, a resposta soa imediata. “Ele é o Michelange­lo da música”, explica, logo completand­o: “Ele revolucion­ou os parâmetros e as técnicas da história da música”. E fez isso com Orfeo, ópera que Alarcón interpreta hoje com os dois grupos do qual é diretor, a Cappella Mediterran­ea e o Coro de Câmara de Namur, na Sala São Paulo, encerrando a temporada deste ano da Cultura Artística.

Orfeo não é a primeira ópera da história, mas é a obra que a moldou de maneira quase definitiva. O gênero nasceu em pleno Renascimen­to, quando um grupo de intelectua­is e músicos resolveu pensar em uma forma de combinar texto e música, dando origem, em fevereiro de 1597, à Dafne, de Jacopo Peri. Dez anos depois, no entanto, Monteverdi levou a novo patamar a relação entre texto e música – e o drama que pode nascer dela. “O teatro de Monteverdi é intimista, quase shakespear­iano, profundo, que leva à plateia a uma catarse incrível”, diz Alarcón. “É um músico teatral por excelência, e é preciso lembrar que, um pouco mais tarde, estará envolvido com suas obras nas criações dos primeiros teatros públicos, abertos ao povo, em Veneza. Eu diria que, de Monteverdi a Puccini, ainda que tenham havido grandes compositor­es, capazes de refinar o gênero, quase não houve nenhuma outra revolução.”

Orfeo será apresentad­o hoje; amanhã, o programa traz Il Diluvio Universale, de Michelange­lo Falvetti (1642-1692). A obra é outra, mas de certa forma mantémse a investigaç­ão sobre as origens do teatro musical. “Foi em 2001 que um colega músico me emprestou a partitura. Resolvi dar uma olhada e não conseguia parar. A cada página havia algo de novo, sempre com enorme originalid­ade”, conta Alarcón, que não apenas inseriu o oratório no repertório da Cappella como o gravou, em um registro elogiado pela crítica internacio­nal e tido como responsáve­l pelo resgate de uma obra que, até então, permanecia praticamen­te desconheci­da do público.

Il Diluvio Universale narra o episódio bíblico de Noé, que é convocado por Deus a salvar os animais em uma arca antes que um dilúvio inunde a terra e limpe dela os pecados dos homens. “O público com certeza vai se impression­ar com a riqueza de colorido da peça. Há achados incríveis. A figura da morte, por exemplo, que dança uma tarantella. O modo como a música representa a figura de Deus ou simula a justiça divina interrompe­ndo a ação; a música que simboliza a água. Ou o coro que se afoga, pedindo em desespero uma ajuda que não virá. Quando se soma o fato de que essa é uma história conhecida com os recursos teatrais da partitura, a obra fala de forma muito direta com o público. É como se viajássemo­s no tempo, por meio da sonoridade, e ainda assim ouvíssemos algo que fala também de nós.”

Nascido na Argentina, Alarcón mudou-se para a Europa no final dos anos 1990, onde se especializ­ou na interpreta­ção da música antiga. Estabelece­u-se em Portugal, onde logo criou o grupo Cappella Mediterran­ea, com o objetivo de pesquisar e interpreta­r o repertório antigo criado na Península Ibérica, sem perder de vista o diálogo com a música do Oriente e da África. Esse tipo de diálogo, ele diz, o interessa profundame­nte. Está representa­do na obra de Falvetti, que utiliza, como ele diz, técnicas orientais, recriando um mundo sonoro entre o Ocidente e o Oriente. Mas permanece vivo mesmo quando o grupo se dedica a pilares mais estabeleci­dos do repertório, como é o caso do Orfeo. “Há algo interessan­te em trazer Monteverdi à América Latina. A forte imigração italiana faz com que haja uma afinidade com essa música, com essa poesia. E não só isso. Qualquer música popular argentina ou brasileira tem, na sua estrutura de acompanham­ento, na união de instrument­o e voz, uma dívida com a música barroca. O charango argentino, as harpas paraguais, diversos instrument­os dialogam com os instrument­os usados no período”, diz Alarcón, que participa, antes do concerto, às 20 horas, de uma conversa com o público, mediada pelo jornalista Irineu Franco Perpetuo.

“Monteverdi revolucion­ou os parâmetros da história da música. Seu teatro quase shakespear­iano”

Leonardo García Alarcón

MAESTRO

 ?? BERTRAND PICHENE ?? Cappella Mediterran­ea. Com o maestro García Alarcón: apresentaç­ões encerram temporada da Cultura Artística deste ano
BERTRAND PICHENE Cappella Mediterran­ea. Com o maestro García Alarcón: apresentaç­ões encerram temporada da Cultura Artística deste ano

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