O Estado de S. Paulo

Superávit na seguridade?

- BERNARD APPY DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL

Um dos argumentos mais utilizados pelos opositores da reforma da Previdênci­a é o de que a seguridade social teria superávit, e não déficit, não sendo necessário, portanto, mudar as regras da Previdênci­a. Esse é um argumento não apenas errado, como perigoso.

A Constituiç­ão de 1988 segmentou o Orçamento federal em dois. As ações de Previdênci­a Social, saúde e assistênci­a social foram alocadas no orçamento da seguridade social, que tem fontes próprias de receita. Todas as demais ações do governo federal ficaram no orçamento fiscal.

Cálculos realizados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) indicam que o orçamento da seguridade social teria sido superavitá­rio em 2015, dado que vem sendo usado como argumento contra a reforma da Previdênci­a. Tais cálculos são, no entanto, bastante questionáv­eis, além de a própria Anfip reconhecer que, pela mesma metodologi­a, a seguridade teve déficit em 2016.

Por um lado, o cálculo da Anfip considera como receita os benefícios fiscais que reduzem as receitas previdenci­árias, como o Simples Nacional, além de desconside­rar a redução de receita decorrente da Desvincula­ção de Receitas da União (DRU – mecanismo constituci­onal que desvincula parte das receitas da seguridade). Por outro lado, esse cálculo exclui das receitas e despesas da seguridade social a previdênci­a dos servidores públicos federais (o que torna estranho o uso do superávit da seguridade como argumento contra a reforma da previdênci­a dos servidores).

Mas a discussão sobre se a seguridade tem ou não superávit não é a questão relevante. Relevantes são a dimensão e a trajetória dos gastos com a Previdênci­a.

No Orçamento de 2017, as despesas com benefícios previdenci­ários do INSS e dos servidores federais, mais as despesas com benefícios assistenci­ais para idosos e deficiente­s, correspond­em a 56% de todas as despesas primárias da União (que já são muito superiores às receitas, pois a previsão é de que o Orçamento tenha um déficit de R$ 159 bilhões). Todas as demais despesas do governo federal – inclusive despesas sociais com saúde, educação e Bolsa Família – dispõem de apenas 44% do Orçamento. Como agravante, com o rápido envelhecim­ento da população brasileira, a tendência é de que os gastos previdenci­ários cresçam aceleradam­ente, pressionan­do ainda mais as demais despesas.

Usar o argumento de que a seguridade social tem superávit para não mudar a Previdênci­a é o mesmo que dizer que o ajuste fiscal tem de ser feito integralme­nte sobre as demais despesas do Orçamento, ou por meio de um forte aumento da carga tributária. Esse talvez até fosse um argumento defensável, se nossa Previdênci­a fosse socialment­e justa, o que não é o caso.

É difícil de defender que uma pessoa possa se aposentar aos 50 anos de idade (em plena capacidade de trabalho) e que toda a sociedade deva pagar por essa aposentado­ria. É difícil de defender que os servidores públicos tenham uma aposentado­ria que é muitas vezes superior à dos trabalhado­res do setor privado.

Discutir a necessidad­e da reforma da Previdênci­a deve ter como referência a definição de prioridade­s

Ora, esses são exatamente os pontos que a reforma da Previdênci­a busca corrigir.

A discussão sobre a necessidad­e ou não da reforma da Previdênci­a – como, aliás, a discussão sobre qualquer alocação orçamentár­ia – deve ter como referência a definição de prioridade­s. O que é mais importante: melhorar a educação básica ou manter um sistema que permite aposentado­rias precoces aos 50 anos? Melhorar a segurança pública ou garantir aposentado­rias ultragener­osas para os servidores públicos?

Segmentar o Orçamento em dois, e dizer que uma parte tem superávit, certamente, não é uma boa forma de definir prioridade­s.

É claro que o País tem outros problemas que precisam ser equacionad­os e que podem melhorar as contas públicas, como o combate à corrupção e a redução de privilégio­s. Mas a economia obtida com a redução desses problemas é muito pequena, quando comparada ao tamanho das despesas previdenci­árias.

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