O Estado de S. Paulo

A outra previdênci­a

- ÉRICA GORGA

No livro A Revolução dos Fundos de Pensão (1995, com original de 1976), Peter Drucker demonstrou que investidor­es institucio­nais, especialme­nte os fundos de pensão, se haviam tornado os grandes proprietár­ios das maiores corporaçõe­s americanas, fenômeno que chamou de “a revolução despercebi­da”. De modo pioneiro, Drucker suscitou questões decorrente­s do envelhecim­ento da população para o capitalism­o dos EUA, concluindo que o futuro da economia e da sociedade americana dependeria da gestão de fundos de pensão e do sistema de seguridade ou previdênci­a social.

Drucker defendeu a tese de que tais fundos, para bem gerirem os recursos de seus pensionist­as investidos em ações de diferentes empresas, não poderiam ser investidor­es passivos: deveriam demandar voz nas companhias em que investisse­m – e até ter poder de veto sobre indicações para seus conselheir­os ou diretores. Segundo ele, fundos de pensão – por intermédio de seus gestores – “têm responsabi­lidade de assegurar o desempenho e o resultado nas maiores e mais importante­s companhias americanas”, cobrando responsabi­lidade financeira.

Os fundos de pensão americanos tornaram-se propulsore­s da boa gestão empresaria­l. O Sistema de Aposentado­ria dos Servidores Públicos da Califórnia (CalPERS), um dos maiores, é mundialmen­te conhecido por incentivar o ativismo de acionistas, criando princípios globais de governança corporativ­a que guiam padrões de administra­ção nas companhias em que investe seu bilionário patrimônio ao redor do mundo. O sistema de previdênci­a gerido por fundos de pensão é força motriz da competitiv­idade americana, fornecendo financiame­nto empresaria­l por meio de investimen­tos no mercado acionário ou de capitais.

Criaram-se e desenvolve­ram-se mecanismos e organizaçõ­es que monitoram o desempenho das companhias para assegurar os direitos de investidor­es e boa rentabilid­ade a fundos de pensão – e a seus pensionist­as. Consolidou-se um segmento de mercado especializ­ado que presta serviços de consultori­a, assessoria e auditoria contábil, financeira e de governança corporativ­a. A divisão e a especializ­ação do trabalho nos moldes de Adam Smith é tal que bancas de advocacia que representa­m fundos de pensão nos processos contra as companhias que os lesaram em fraudes e crimes corporativ­os, por questões de ética e conflitos de interesses, são completame­nte separadas e independen­tes das grandes bancas que defendem as companhias e seus administra­dores e a elas prestam serviços. Leis e jurisprudê­ncia benefician­do investidor­es institucio­nais avançaram.

O Brasil, até o presente, está alheio a tal evolução, apesar da relevância do patrimônio dos fundos de pensão para a economia nacional, que se situa na casa de R$ 1 trilhão, segundo cálculos da CVM, montante bem superior ao orçamento de 2017 para o Regime Geral da Previdênci­a, de R$ 562 bilhões. Não se vê na prática progresso consistent­e dos fundos de pensão para defender o interesse de seus pensionist­as e assim alimentar o cresciment­o econômico do País.

De acordo com a Superinten­dência Nacional de Previdênci­a Complement­ar (Previc), fundos de pensão brasileiro­s registrara­m déficit de R$ 70,6 bilhões em 2016. O déficit cresceu de R$ 9 bilhões para R$ 77,8 bilhões de 2012 a 2015, isto é, 700% em apenas quatro anos. Dez fundos concentram 88% do déficit. Os rombos de Petros (Petrobrás), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios) somam R$ 30 bilhões (Estado, 24/5 e 1.º/5).

Grande parte das aplicações dos fundos de pensão é concentrad­a em ações de empresas que se envolveram com corrupção sistêmica revelada pelas Operações Lava Jato e Greenfield. Estima-se que só os ilícitos investigad­os na Greenfield causaram cerca de R$ 54 bilhões de prejuízos, que afetaram quase 2 milhões de beneficiár­ios dos fundos de pensão (Estado, 18/6). É sintomátic­o, por exemplo, que o Petros tenha investido em negócios do Grupo J&F, controlado pelos irmãos Batista, e o Funcef tenha amargado prejuízos de R$ 17 bilhões na Sete Brasil, investimen­tos eivados de ilicitudes.

Tais perdas levaram à necessidad­e de aportes adicionais imediatos pelas empresas e por funcionári­os, tanto da ativa como aposentado­s, para evitar o colapso de seus sistemas de previdênci­a complement­ar. Beneficiár­ios do Petros e a própria Petrobrás começarão a repor perdas com contribuiç­ão extra de, no mínimo, R$ 17 bilhões, metade cada. Mais de 84 mil funcionári­os sofrem descontos e contribuiç­ões extras de 20% a 30% do valor de seus benefícios para cobrir o rombo do Postalis.

Não há transparên­cia suficiente ou debate sério sobre quanto dos déficits foram causados por desequilíb­rios atuariais decorrente­s da longevidad­e dos beneficiár­ios ou por investimen­tos mal feitos ou fraudulent­os. Não há histórico consistent­e de ações judiciais dos próprios fundos de pensão para buscar reparação de prejuízos dos pensionist­as causados por corrupção. Inexiste cultura de cobrança dos gestores dos fundos pelos deveres fiduciário­s devidos aos pensionist­as. Em vários casos suspeitase de conluio de gestores dos fundos com administra­dores de companhias para a perpetraçã­o de ilícitos. Já apontei a insuficiên­cia do Direito Penal para solucionar o problema, posto que a reparação financeira dos lesados depende de aparato de ressarcime­nto cível não desenvolvi­do no Brasil.

O atual debate nacional sobre a reforma da Previdênci­a é parcial, pois se restringe equivocada­mente à parte diretament­e gerida pelo Estado, negligenci­ando os graves problemas do sistema de previdênci­a complement­ar. Não basta reformar a Previdênci­a oficial, há que pensar na urgente reforma de leis e institutos jurídicos anacrônico­s vigentes para proteção de pensionist­as do sistema de previdênci­a complement­ar.

Não há transparên­cia suficiente ou debate sério sobre os déficits nos fundos de pensão

DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMEN­TO NA UNIVERSIDA­DE DO TEXAS

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil