O Estado de S. Paulo

A tentação de usar as reservas

- AFFONSO CELSO PASTORE

Recentemen­te, o presidente do BNDES sugeriu que o “uso criativo” das nossas reservas poderia melhorar o desempenho da economia brasileira. Ele propôs que através de um fundo offshore parte das reservas fossem usadas para estruturar a privatizaç­ão da Eletrobrás e obter um “lastro” para a reforma da Previdênci­a (Broadcast, 6/11). A história brasileira de sucesso nas privatizaç­ões do governo FHC mostra claramente que não precisamos da muleta das reservas para privatizar a Eletrobrás, e honestamen­te não consigo ver como o uso das reservas poderia resolver o problema do déficit da Previdênci­a.

A busca de “soluções mágicas” travestida­s de “formas criativas” é uma doença recorrente no Brasil. Um grau semelhante de heterodoxi­a já havia sido sugerido a Lula por um ex-ministro da Fazenda, com a diferença de que em vez de usar um fundo offshore as reservas seriam depositada­s no Banco do Brasil, no exterior, que financiari­a em reais os construtor­es e concession­ários da infraestru­tura. Uma variante desSes “esquemas” foi usada durante o PAEG, quando bancos brasileiro­s captavam recursos no exterior financiand­o estradas e usinas hidrelétri­cas com base na Lei 4.131 e na Resolução 63 do Banco Central, desembocan­do na crise de balanço de pagamentos dos anos 80.

Para que servem as reservas? Será que o Brasil precisaria de US$ 370 bilhões de reservas? No caso em que existissem argumentos para reduzi-la, o que deveria ser feito com os recursos obtidos?

O benefício das reservas de um país é gerar um “seguro” contra movimentos que coloquem em risco os pagamentos internacio­nais, com reflexos negativos sobre a economia, e um de seus custos – o de carregamen­to – vem da alta taxa de juros sobre os títulos públicos necessário­s para esteriliza­r seus efeitos monetários.

Países sujeitos ao contágio das oscilações vindas do resto do mundo e com políticas macroeconô­micas mais frágeis precisam de reservas mais elevadas do que economias com regimes macroeconô­micos mais sólidos, e para ilustrar este ponto quero comparar os casos da Austrália e do Brasil.

A Austrália tem apenas US$ 50 bilhões de reservas ante os US$ 370 bilhões do Brasil, mas a Austrália não intervém no mercado de câmbio, adotando uma flutuação cambial pura, enquanto que o Brasil intervém pesadament­e.

Entre 1994 e 2012 predominar­am as intervençõ­es no mercado à vista, o que serviu para reduzir a volatilida­de cambial e acumular reservas. A partir de 2012, não há mais intervençõ­es no mercado à vista, e sim intervençõ­es através de derivativo­s cambiais e da eventual oferta de “linhas”, superando a intensidad­e do período anterior.

Quem olhasse para esses dados imaginaria que a volatilida­de cambial na Austrália é muito superior à do Brasil, mas o que ocorre é o contrário, e as razões são duas: contrariam­ente à Austrália, o Brasil é sujeito a crises políticas intensas (como em 2002/2003 e novamente em 2015) e tem uma instabilid­ade macroeconô­mica que não existe na Austrália.

Alguém poderia argumentar que um estoque de reservas de US$ 200 bilhões foi suficiente para que enfrentáss­emos o contágio da crise de 2008/2009. Lembremos que naquela ocasião os bancos internacio­nais cortaram as linhas de financiame­nto de exportaçõe­s, e o Banco Central usou em torno de US$ 20 bilhões das reservas para substituir as linhas de financiame­nto das exportaçõe­s, evitando que a queda das exportaçõe­s aumentasse ainda mais o contágio recessivo vindo do resto do mundo.

Naqueles anos, as reservas de US$ 200 bilhões foram mais do que suficiente­s, porém lembremos que o Brasil gerava superávits primários acima de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) e que tinha o “grau de investimen­to”. Será que o Banco Central teria o mesmo sucesso se em 2008/2009 vivêssemos a situação macroeconô­mica ocorrida em 2015, na presença de déficits primários estruturai­s enormes e já tendo perdido o grau de investimen­to?

Em algum momento, no futuro, quando tivermos estabiliza­do nosso regime macroeconô­mico poderemos descobrir que o benefício marginal de uma reserva mais elevada cai muito abaixo de seu custo marginal, sendo racional reduzi-la. Mas quando isso ocorrer o melhor uso das reservas será a compra de dívida pública, e não o seu desperdíci­o em “esquemas criativos”.

Reservas são um ‘seguro’ contra movimentos que põem em risco pagamentos externos

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

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