O Estado de S. Paulo

Exército toma capital do Zimbábue e prende ditador

Fim de uma era. Regime de Robert Mugabe, no poder desde a independên­cia do país, em 1980, caiu após golpe de estado militar; estopim teria sido demissão do vice, Emmerson Mnangagwa, e a iminente designação da primeira-dama como sucessora do presidente

- HARARE

Tanques tomaram as ruas de Harare, capital do Zimbábue, e foram ouvidos tiroteios e explosões. O ditador Robert Mugabe, de 93 anos e há 37 no poder, está mantido em prisão domiciliar. Militares, no entanto, negam que tenham dado um golpe de Estado. O estopim para a ação teria sido a demissão do vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, cotado para suceder a Mugabe.

Após 37 anos no poder, o regime de Robert Mugabe chegou ao fim tão abruptamen­te que poucos perceberam o que aconteceu na madrugada de ontem. A presença de tanques e a interdição de algumas ruas eram os únicos sinais de que havia caído o ditador que governou o Zimbábue desde sua independên­cia, em 1980.

Breves tiroteios e algumas explosões foram registrado­s na capital Harare. O telejornal da ZBC, a TV estatal, não foi ao ar na noite de terça-feira. Em seguida, os militares anunciaram que haviam ocupado a emissora. O golpe foi silencioso. O Exército nega. Mugabe confirma.

O ditador está em prisão domiciliar. A notícia foi confirmada ontem pelo presidente da África do Sul, Jacob Zuma, que falou com ele por telefone. “Ele está confinado, mas está bem”, disse o sul-africano. O partido de Zuma, o Congresso Nacional Africano (CNA), tem uma relação fraternal com Mugabe.

Durante a luta contra o apartheid, o Zimbábue deu apoio logístico aos ativistas negros sulafrican­os. Nelson Mandela, um dos fundadores do CNA, e Thabo Mbeki, ex-presidente da África do Sul, protegeram o ditador zimbabuano das pressões internacio­nais.

Zuma segue o mesmo roteiro. Ontem, ele enviou para o Zimbábue sua ministra da Defesa, Nosiviwe Mapisa-Ngakula, e o seu ministro da Segurança, Bongani Bongo. A missão é dialogar com Mugabe e com o Exército – sinal de que a situação ainda é fluida.

Os militares dariam uma coletiva ontem, quando pretendiam anunciar um acordo sobre o futuro do país. No entanto, o encontro foi cancelado. Em Harare, circulam boatos de que há uma diferença entre o que o Exército quer e o que Mugabe estaria disposto a ceder.

A percepção é a de que quanto mais tempo os militares permanecer­em em silêncio, maior é a tendência de que os generais não devolvam o poder aos civis. O estopim do golpe, segundo analistas, foi o expurgo do vicepresid­ente Emmerson Mnangagwa, no dia 7.

Ele era favorito para suceder a Mugabe, de 93 anos. Sua demissão foi um sinal de que o governo cairia no colo de Grace Mugabe, mulher do ditador. Ela deveria ser ungida como sucessora na convenção do partido governista no mês que vem. Aos 52 anos, Grace é conhecida pelas gastanças nas capitais europeias. Em 2003, durante viagem a Paris, ela teria torrado US$ 120 mil em poucas horas. Quando acabava o dinheiro, ela simplesmen­te tirava do Banco Central do Zimbábue – como em 2004, quando fez um saque de US$ 6,5 milhões.

O paradeiro da mulher do ditador ainda é um mistério. Há quem diga que ela esteja com o marido. Outros, que “Gucci Grace”, como é conhecida a primeira-dama, estaria em viagem de negócios à Namíbia e teria escapado da prisão domiciliar.

Em abril, Mugabe comemorou seu aniversári­o em uma festa para os bajuladore­s mais íntimos. Antes de partir o bolo de 93 quilos, ele disse que viveria até os 100 anos. A declaração levou ao extremo a imagem do déspota africano disposto a fazer de tudo para se manter no poder.

Mas nem sempre foi assim. Quando assumiu, em 1980, ele era o herói que libertou a maioria negra de um regime branco parecido com o sul-africano. Sua primeira medida foi trocar o nome do país, de Rodésia para Zimbábue. O patriarca, contudo, caminhou lentamente para a ditadura. “Ele foi um líder formidável, mas o poder o degenerou, a ponto de ele colocar o Zimbábue de joelhos”, disse Shadrack Gutto, professor da Universida­de da África do Sul.

Entre 1983 e 1984, a 5.ª Brigada do Exército matou 20 mil zimbabuano­s da etnia ndebele na região de Matabelela­nd, sul do país – um caso clássico de genocídio. O objetivo era acabar com a dissidênci­a política dentro do grupo que libertou o país, o embrião de uma oposição liderada por Joshua Nkomo, um ndebele que se exilou em Londres.

Mas o regime também foi marcado por escândalos mais prosaicos. Em 1995, durante uma feira de livros em Harare, ele disse que o homossexua­lismo era uma “ofensa repugnante à natureza” e chamou os gays de “pervertido­s e sodomitas”.

O hábito de se comportar como se fosse dono do Estado explica os assaltos frequentes aos cofres públicos. Em 2011, o ministro das Finanças, Tendai Biti, disse que US$ 1 bilhão em receitas com a produção de diamantes desaparece­u do Tesouro.

Para financiar os gastos públicos, Mugabe passou a década passada imprimindo dinheiro. O resultado de sua política econômica beira a insanidade. Em 2008, a inflação chegou a quase 80 bilhões por cento ao mês. A última nota impressa tinha um valor de face de 100 trilhões de dólares zimbabuano­s.

A hiperinfla­ção acabou quando a população parou de usar a moeda e adotou o dólar americano. A economia, no entanto, nunca se recuperou. Mais de 70% da população continua vivendo abaixo da linha de pobreza e taxa de desemprego chega a 95%.

No entanto, nada disso tirava o seu sono. “O Zimbábue é um dos países mais desenvolvi­dos da África”, disse Mugabe em maio, durante um fórum econômico em Durban, na África do Sul. Durante o discurso, era possível escutar os risos da plateia a cada delírio do ditador.

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JEKESAI NJIKIZANA/AFP Controle. Exército montou bloqueios em ruas de Harare

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