O Estado de S. Paulo

Um golpe na ascensão da primeira-dama

Intervençã­o do Exército do Zimbábue frustra planos de Mugabe de passar o poder para sua mulher, Grace

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Às 4 horas de ontem, horário local, os generais do Zimbábue foram à TV dizer que haviam assumido o controle do país. Tiros foram ouvidos na vizinhança do bairro onde mora a família de Robert Mugabe, o tirano de 93 anos que é o único líder que a maioria dos zimbabuano­s conheceu e governa o país desde sua independên­cia, em 1980.

Apresentan­do-se na televisão estatal nas primeiras horas da manhã de ontem, o general Sibusiso Moyo disse que a ação não era “uma tomada do governo pelos militares”, mas sim um ato temporário para evitar conflitos.

Os conspirado­res atacaram, depois de semanas de turbulênci­a e intrigas sobre a sucessão de Mugabe, um presidente cuja saúde e capacidade estão fragilizad­as. No início do mês, Mugabe depôs Emmerson Mnangagwa, seu vice-presidente, leal aliado e suposto sucessor, na tentativa de abrir caminho para que sua mulher, Grace, o substituís­se.

Se tudo tivesse seguido o planejado, ele provavelme­nte a teria nomeado sua vice-presidente em um congresso do partido em dezembro. Isso, por sua vez, teria permitido que ela ocupasse seu cargo, caso ele renunciass­e ou morresse na presidênci­a.

No entanto, a suposta ascensão da senhora Mugabe, ex-datilógraf­a do presidente e uma ávida e extravagan­te compradora, desgostou até os anciãos mais cínicos da União Nacional Africana do Zimbábue-Frente Patriótica (Zanu-PF), o partido no poder. Muitos dos seus figurões lutaram na guerra civil contra o domínio da minoria branca na então Rodésia e encaram a senhora Mugabe, de 52 anos, como uma intrusa ávida de poder. Eles tratam com o mesmo desdém a sua facção “G40” (“Geração 40”), um grupo relativame­nte jovem de ministros do partido.

Por um tempo, a senhora Mugabe parecia estar em alta. Mas ela não conseguiu levar em conta o quão era desprezada dentro do partido, particular­mente porque entrou em conflito com duas de suas facções mais importante­s – os “securocrat­as” (comandante­s das Forças Armadas do Zimbábue) e antigos combatente­s da guerra civil – em sua tentativa de eliminar rivais para a presidênci­a. Grace alienou o primeiro grupo quando orquestrou a saída, em 2014, de Joice Mujuru de seu cargo de vice-presidente. Mujuru era uma antiga guerrilhei­ra (seu nome de guerra pode ser traduzido como “sangue derramado”) e seu falecido marido era um ex-comandante do Exército.

Grace Mugabe conquistou mais inimigos ainda quando assumiu um papel de liderança na tentativa de forçar a saída de Mnangagwa, ex-chefe de longa data dos serviços de segurança. “A cobra deve ser atingida na cabeça”, declarou a mulher de Mugabe em uma reunião poucos dias atrás.

Na segunda-feira, o chefe das forças de defesa, o general Constantin­o Chiwenga, deu uma entrevista coletiva na qual fez uma ameaça velada à senhora Mugabe e a sua facção. Ele advertiu o Zanu-PF contra o expurgo de membros “do comando de libertação” e disse que o Exército não hesitaria em intervir.

Apenas dois dias depois, isso foi feito, com a ocupação da emissora estatal e do Parlamento, prisão dos principais membros do G40 e da liga da juventude do partido. Parece não ter havido derramamen­to de sangue em sua maior parte, embora a casa de Ignatius Chombo, o ministro das Finanças, que está entre os detidos, apresente marcas de bala. Falou-se que dois de seus guardas foram mortos. Tiros também foram ouvidos em outros pontos da capital.

Apesar de incidentes esporádico­s, Harare parece estar firmemente sob o controle do Exército. Os obstáculos que a polícia colocou nas estradas que levam à cidade foram substituíd­os por bloqueios controlado­s por soldados. Pedese às pessoas a caminho do aeroporto que mostrem seus documentos de identidade, no que parece ser uma tentativa de evitar a fuga daqueles que escolhidos para a prisão pelos líderes do golpe.

Muitos no Zimbábue estão agora acompanhan­do atentament­e o retorno de Mnangagwa, que deve acabar assumindo o comando. Muitos líderes na região (e talvez outros, bem mais distantes), provavelme­nte, concordarã­o com uma transferên­cia de poder rápida e relativame­nte sem derramamen­to de sangue. Eles encaram Mnangagwa como pragmático e ressaltam que ele falou sobre a necessidad­e de o Zimbábue se reconcilia­r com o Ocidente, reformar sua economia e oferecer uma compensaçã­o aos fazendeiro­s brancos expulsos de suas terras por Mugabe.

Contudo, aceitar isso pode ser um erro. O histórico de Mnangagwa é tão odioso quanto o de Mugabe. Ele desempenho­u um papel decisivo na Operação Gukurahund­i, na década de 80, quando o Exército de Mugabe travou uma guerra étnica com os ndebeles, tribo minoritári­a do sul do país, na qual dezenas de milhares de pessoas foram mortas.

Mnangagwa tem pouco amor pela democracia. Sob o seu comando, os serviços de segurança espancaram membros da oposição inúmeras vezes e manipulara­m eleições. Poucos zimbabuano­s apreciam a ideia de que o Exército substitua um tirano banhado de sangue por outro. “É um pequeno país hediondo”, lamentou um importante líder político da oposição, apenas algumas horas antes da tomada da cidade. Após 37 anos de governo de Mugabe, os cidadãos do país merecem a possibilid­ade de escolher seus líderes de forma livre e justa.

Grace Mugabe entrou em conflito com duas facções importante­s na tentativa de eliminar possíveis rivais

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TSVANGIRAY­I MUKWAZHI/AP-27/2/2016 Consumista. Mugabe e sua mulher Grace, conhecida por suas extravagan­tes compras em lojas do exterior

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