O Estado de S. Paulo

50 anos separam duas épocas do País em transe

Mostra na Cinemateca e no Cinusp celebra cinquenten­ário da obra-prima de Glauber Rocha e propõe seu diálogo com outros filmes e tendências

- Luiz Zanin Oricchio

É efeméride, mas ultrapassa a mera celebração do passado. Brasil em Transe, mostra de filmes e debates na Cinemateca Brasileira e no Cinusp (de hoje, 16, a 1.º de dezembro), sob curadoria de Ismail Xavier, discute um momento privilegia­do da cultura brasileira e estabelece o diálogo entre dois períodos febris, separados por 50 anos – 1967 e 2017.

A abertura da mostra será hoje na Cinemateca Brasileira, com apresentaç­ão (às 20h) de Carlos Augusto Calil e Maria Dora Mourão, seguida da exibição de Terra em Transe (1967), obra máxima de Glauber Rocha. Não se trata apenas de um filme, mas de uma obra-síntese que aglutina tendências e angústias da época. Em sua radical abertura, aponta para o Tropicalis­mo, essa linha de desconstru­ção do modelo estético até então dominante em várias áreas da cultura brasileira, do cinema à música popular.

Ambientado no país imaginário de Eldorado, Terra em Transe é um formidável e desesperad­o estudo dos fundamento­s instáveis da nação brasileira. De espírito onívoro, devora e digere elementos como o militarism­o, o populismo, a divisão das esquerdas, a intervençã­o internacio­nal, as classes médias, a deficitári­a formação democrátic­a, a traição dos intelectua­is, etc.

Nesse caldo de cultura histórico, Eldorado vive um momento pré-revolucion­ário em seguida abortado por um golpe de direita. Terra em Transe, entre inúmeras outras coisas é, também, o filme-sintoma do lento e doloroso processo de reflexão da esquerda, perplexa pela ausência de resistênci­a ao golpe de 1964. Mudando tudo o que deve ser mudado, o paralelism­o dessa história de derrota do passado com a época atual parece evidente. O filme de Glauber e suas implicaçõe­s serão discutidos no sábado, às 18h, numa mesa composta pelos estudiosos de cinema Leandro Saraiva e Ilana Feldman e o psicanalis­ta Thales Ab’Saber. O longa será exibido às 16h.

O Cinema Novo não estava só na ressonânci­a daqueles anos de chumbo. Ao lado dele, e contra ele, formava-se outra onda, a do chamado “cinema marginal” que, nessa mostra, adota o nome de “cinema de invenção”, proposto pelo crítico Jairo Ferreira (cujo filme, O Vampiro da Cinemateca, será exibido).

Essa vertente comparece de maneira forte, a começar pelo título-manifesto A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, seguido por O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, Meteorango Kid – O Herói Intergalát­ico (1969), de André Luiz Oliveira, Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci, entre outros. As inovações estéticas e a percepção de Brasil pela ótica do cinema de invenção serão debatidos em duas mesas ao longo da mostra. A absorção crítica da cultura pop, consciênci­a terceiro-mundista exacerbada, rebeldia escrachada seriam caracterís­ticas presentes na maior parte desses filmes; são elas que os mantêm atuais e atrativos para o público jovem.

Ao propor essas articulaçõ­es, Brasil em Transe vai além das mostras de cinema convencion­ais, que se limitam a agrupar filmes por tendências ou autores. Neste, é todo um movimento cultural e político, e seus abalos sísmicos, que se articulam e dialogam entre si, por meio das obras e dos debates. Menos não se poderia esperar de seu curador, Ismail Xavier, professor da USP, ensaísta maior do cinema em nosso país e autor do incontorná­vel Alegorias do Subdesenvo­lvimento – Cinema Novo, Tropicalis­mo, Cinema Marginal (Editora Brasiliens­e, 1993).

 ?? VERSÁTIL ?? ‘Terra em Transe’. Exposição única dos pilares contraditó­rios do Brasil
VERSÁTIL ‘Terra em Transe’. Exposição única dos pilares contraditó­rios do Brasil

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil