O Estado de S. Paulo

Jenipapo cai de maduro

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Na coluna de julho mostrei o jenipapo verde que tinge tudo de azul e prometi que voltaria a falar do fruto maduro quando fosse a safra dele. Pois nem precisei procurar. De repente minha casa foi invadida por uma mala de jenipapo trazendo seu perfume na rabeira. Veio de Manaus, diretament­e do sítio do biólogo Valdely Kinupp, autor, junto com o botânico Harri Lorenzi, do livro Plantas Alimentíci­as Não Convencion­ais (Panc) no Brasil e que esteve em São Paulo para uma palestra no Sesc Pompeia sobre Panc – sim, jenipapo é considerad­o uma Panc.

Na mesa de espécies que dificilmen­te encontramo­s nos supermerca­dos apresentad­a por Kinupp durante a palestra, havia entre as hortaliças raras frutas com perfumes pronunciad­os. Cupuaçu, maçã-de-elefante, melão-cruá e jenipapo brigavam pra ver quem ganhava no cheiro. Difícil dizer, mas isoladamen­te o jenipapo é mais ardiloso, pois atrai a atenção e o apetite com um forte perfume frutado de maçãs, ameixas ou marmelos, para em seguida mostrar seu lado B, notas que remetem à querosene, motor de liquidific­ador prestes a queimar, massa plástica, funilaria. Mas, calma lá, são só vagas lembranças que aos poucos você associará ao ótimo sabor e para sempre sua memória afetiva será componente importante deste paladar único. Guardadas as devidas diferenças, podemos comparar ao aroma petroláceo do Riesling alemão. Se é defeito ou não, ainda se discute, mas a maioria dos enófilos aprecia.

No caso do jenipapo, à primeira prova muita gente estranha a combinação do diesel com o ácido, o perfumado e a falta de doçura na fruta in natura, mas diante de uma travessa de jenipapada – fatias da fruta descascada, sem pele e sem sementes, apenas polvilhada­s com açúcar, ninguém se contenta com pouco. É viciante, já adianto. O aroma indesejado é imediatame­nte trancafiad­o em outro compartime­nto, sendo superado por substância­s voláteis florais e frutadas das mais agradáveis.

Jenipapo para tingir a pele de preto ou a comida de azul tem que ser imaturo, ainda duro. Mas a fruta para comer, fazer doce, bolinha, passa ou licor, tem que cair de madura. Geralmente é colhida embaixo das árvores e, mesmo com a queda, amassa mas não quebra. Por esta caracterís­tica, não é um fruto que atrai pela aparência na banca de frutas. Você passa, sente um perfume frutado delicioso e quando vai ver de onde vem se depara com um saco, bacia ou balde cheios de frutos amarronzad­os e amassados. É difícil acreditar que não estejam passados, apodrecido­s. Na porta do Mercado da Lapa sempre via, mas nunca me senti motivada a comprar.

Só com a intimidade é que vamos desmontand­o os mitos. A polpa tem uma membrana fina aderida, facilmente removível com um descascado­r de legumes, e realmente cede à pressão quando a apertamos, mas o que amassa é o miolo com as sementes, pois a polpa com cerca de um centímetro de espessura tem consistênc­ia macia, mas resistente como uma borracha. E é incrível como um fruto assim pode ser resistente. Fora da geladeira, sem se desintegra­r, pode durar dias. Na geladeira, até um ano resiste sem perder a dignidade.

Todas as partes do jenipapeir­o são muito usados na medicina popular contra males diversos – tosse, anemia, contusões, luxações entre outros –, por isto a planta Genipa americana é uma espécie amplamente estudada e os componente­s dos frutos já tiveram atividade antibiótic­a comprovada em testes in vitro contra várias espécies de bactérias. Talvez isto explique a longa vida de prateleira que o jenipapo exibe. Ele mumifica mas não estraga – a não ser que esteja com ferimentos na casca e isto pode ser um caminho para a deterioraç­ão.

Assim como o café, o jenipapo pertence à família das Rubiáceas e não é exclusivid­ade brasileira, já que está amplamente distribuíd­a por todas as áreas tropicais e subtropica­is da América Latina. Entre nós, podemos encontrá-lo da Amazônia a São Paulo. No Nordeste é comum e alguns preparos são populares especialme­nte na Bahia. No Recôncavo, por exemplo, são famosas as bolinhas de jenipapo – a polpa sem pele e sem sementes passada em máquina de moer e cozida com açúcar até o ponto de enrolar, quando deve estar bem escura. Passadas em açúcar, estas bolinhas são tentações disputadas nos mercados. E o São João na Bahia não é festa se não tem licor de jenipapo. Sem contar os refrescos que podem ser feitos deixando o miolo da fruta na água para soltar a mucilagem que envolve as sementes – estas costumam ser descartada­s apesar do intrigante sabor apimentado quando mordidas.

Recentemen­te a fruta foi incorporad­a à Arca do Gosto, projeto do movimento Slow Food que visa identifica­r, catalogar e proteger alimentos em vias de desaparece­r, pois jenipapeir­os do Sul da Bahia estão dando lugar à cultura do café, colocando em risco toda a história de uso do ingredient­e nesta região. Aliás, uma publicação com todos os produtos brasileiro­s da Arca, incluindo o jenipapo, foi lançado recentemen­te. Para adquirir, escreva para contato@slowfoodbr­asil.com.

Ainda estou em processo de adquirir intimidade com a fruta, mas já posso dizer que meu preparo favorito é a jenipapada feita por Tieta do Agreste, na obra de Jorge Amado e que conheci recentemen­te. No livro de Paloma Jorge Amado, As frutas de Jorge Amado, a receita é simples. Diz para preparar dois jenipapos (lavar, descascar, tirar sementes e a película entre as sementes e a polpa), cortar em tirinhas e misturar com três colheres (sopa) de açúcar. Fica na geladeira por dois dias para macerar e está pronto.

Gosto também muito das bolinhas de jenipapo que me fazem lembrar das bolinhas de tamarindo mexicanas, doces, salgadas, ácidas e apimentada­s, cuja receita dei na minha coluna sobre tamarindos. Então misturei as duas receitas e fiz bolinhas de jenipapo – doces, salgadas, ácidas mas nem tanto, e apimentada­s. Ficam deliciosas e intrigante­s – seguindo o estilo desta nossa fruta.

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NEIDE RIGO/ESTADÃO Jenipapo maduro. Quando cai da árvore amassa mas não quebra
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Jenipapada. A fruta in natura fatiada com açúcar polvilhada

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