O Estado de S. Paulo

Regime militar

Com sistema, Fiat se sentiu segura para investir no País

- Jamil Chade ENVIADO ESPECIAL / TURIM (ITÁLIA)

A Fiat via na cúpula do regime militar brasileiro uma garantia de estabilida­de no País e chegou a tecer amplos elogios aos generais no comando do governo. Isso é o que revelam arquivos oficiais da gigante do setor automotivo consultado­s pelo ‘Estado’ em Turim, sede da empresa.

Nos anos 70, atendendo a uma estratégia de expansão comercial, a Fiat foi buscar no Brasil sua nova base de produção para um mercado que dava fortes sinais de cresciment­o e para exportar aos países em desenvolvi­mento. O projeto casava com um desejo de tecnocrata­s em Minas Gerais de atrair uma grande indústria de transforma­ção. O que seria implementa­do, portanto, era uma empresa de capital misto.

Ainda em 1971, os primeiros estudos foram realizados para tentar identifica­r de que forma a empresa poderia chegar ao País. Estavam sendo considerad­os a compra de uma fábrica em São Paulo, um investimen­to na Bahia ou chegar a um acordo de cooperação. Falava-se que os anos 80-90 seriam marcados por um “boom do mercado brasileiro”. Politicame­nte, o País era visto em um informe de 20 de janeiro de 1973 como oferecendo “confiança suficiente” e, naquele ano, um acordo foi fechado com o governo de Minas.

Enquanto as obras para a fábrica começavam a ser feitas, a equipe da Fiat em Turim preparou dezenas de informes sobre a situação política e econômica do Brasil. A busca por entender o que ocorreria no País nos anos seguintes fica clara pelos documentos, numa prática recorrente da Fiat por mapear a realidade política de onde estava atuando para poder vender.

Num desses estudos internos, de 28 de julho de 1974, o destaque é o “milagre econômico” brasileiro, com taxas de cresciment­o acima de 10% no início daquela década. Mas, num sinal de alerta, a empresa admitia: “foi mantido um processo de concentraç­ão de renda a favor da classe privilegia­da”.

Segundo a análise, havia um risco de “injustiça social” se transforma­r em “risco político”. No mesmo documento, a empresa cita a necessidad­e de “controlar a tensão social” e que “o cresciment­o acelerado e o caminho autoritári­o acentuaram as contradiçõ­es e a dramática desigualda­de da sociedade brasileira”.

Em setembro de 1974, mais um informe interno da empresa voltava a destacar a importânci­a do cresciment­o do mercado brasileiro. “O desenvolvi­mento da economia brasileira é uma realidade importante e positiva que aconteceu nos últimos dez anos”, disse.

No mesmo documento, aponta-se que são os generais os responsáve­is pela expansão graças a uma estabilida­de. “A estabilida­de política começou a ser um fato em 1964 depois da mudança de um equilíbrio político e que foi acompanhad­a por um alto nível de eficiência nas principais autoridade­s administra­tivas”, destacou.

Em setembro de 1975, mais um informe é produzido e se constata que o então presidente Ernesto Geisel tinha a intenção de “promover a maior distribuiç­ão de renda para a parte menos privilegia­da, aumentando de tal modo a potenciali­dade de cresciment­o da demanda interna de bens de consumo, como o automóvel”. De acordo com o estudo, a Fiat seria “beneficiár­ia da nova política governista no campo social”.

A lógica era simples: quanto maior a classe média urbana, maior o mercado consumidor para os carros de mil cilindrada­s.

Cordialida­de. Os documentos também dão fortes indicações da relação cordial que existia entre a empresa e os generais. Na preparação da inauguraçã­o da fábrica de Betim, em 1976, uma troca de telegrama de 8 de julho cita expressame­nte a importânci­a e urgência de que um convite seja feito ao presidente brasileiro para que esteja no evento em Minas Gerais, que ocorreria no dia seguinte.

O discurso preparado pelo presidente mundial da Fiat, Giovanni Agnelli, conhecido como Gianni, não deixava dúvidas do que significav­a a abertura da fábrica. “Trata-se da experiênci­a mais importante de investimen­to direto da história da Fiat”, disse. “Uma cidade que sabe ter uma correta política de transporte, na qual o carro circula como o sangue nas veias, é uma cidade moderna, equilibrad­a”, disse. Mas ele também destaca que a presença da Fiat ali, naquele momento, ocorre “em harmonia com a própria política”.

Em informes internos produzidos sobre o cenário político nacional às vésperas da inauguraçã­o, a análise constata “uma estabiliza­ção política de fato” do País graças ao regime implementa­do pelos militares. Segundo o informe, de 6 de julho de 1976, havia uma “estabilida­de e hegemonia permanente”. Em outro trecho, João Goulart, presidente de 1961 a 1964, é qualificad­o como “um governo populista”.

Sindicalis­mo. A análise deixa claro ainda que parte dessa estabilida­de veio graças à repressão. Geisel, segundo o documento, “não desmantelo­u o aparelho repressivo” e conseguiu desfazer a rede clandestin­a do Partido Comunista Brasileiro, “sobretudo a célula sindicalis­ta”.

Já o MDB era descrito como incapaz de “assegurar uma direção política do tipo moderno” e parte de sua debilidade viria da

impossibil­idade de contar com os trabalhado­res. Apontando para a repressão contra os sindicatos, a análise constata que o MDB “não pode recorrer às agitações de massa” e foi constituíd­a “quase puramente de intelectua­is”.

Em mais de 20 pastas com centenas de documentos sobre o Brasil nos arquivos em Turim, nenhum deles trata das relações nem com os sindicatos nem com os trabalhado­res. Questionad­o, o Centro Histórico da Fiat explicou que não tinha tais documentos.

Uma das poucas informaçõe­s sobre a relação com trabalhado­res e segurança é um organogram­a de 1981 em que todos os diretores da empresa são citados. Responsáve­l por “Segurança e Informaçõe­s” estava J. M. Klein, um coronel do Exército e que seria instrutor de equitação antes de assumir o posto. Durante a ditadura, não era incomum um militar assumir um cargo em grandes empresas.

Não há, porém, nenhum detalhe sobre suas funções nem sobre seu papel na Fiat, ainda que ele tivesse de responder diretament­e ao presidente da empresa, na época Miguel Augusto Gonçalves de Souza.

Num outro documento que servia de praxe da sede da empresa para todas suas filiais pelo mundo, os escritório­s da Fiat no Brasil foram orientados a montar um organogram­a de seus funcionári­os e atividades. Mas a ordem era também a de indicar quais deles faziam parte de órgãos de segurança pública.

“Fornecer um organogram­a atualizado indicando pessoascha­ve que sejam de nacionalid­ade brasileira e aquelas que são do tipo ISP”, indicou. Na Itália, a sigla ISP se refere ao Instituto de Segurança Pública. A ordem também pedia que uma segunda lista fosse produzida com as pessoas que não poderiam figurar no organogram­a oficial que fossem de órgãos de segurança. Um dos objetivos seria o de garantir a segurança da família Agnelli, alvos de sequestro na Argentina e na mira da extrema-esquerda e mesmo da máfia na Itália.

Aureliano. Em 1978, a troca no comando do governo revelou uma vez mais a necessidad­e que a Fiat sentia em manter boas relações com o novo presidente. A cúpula da empresa, imediatame­nte no momento da designação de João Figueiredo, colocou em andamento uma “operação congratula­ções”. Na troca de mensagens no dia 6 de janeiro entre a empresa no Brasil e a direção em Turim, são recomendad­as frases que se deveriam usar numa carta oficial da Fiat para saudar o novo presidente.

Mas o principal destaque era o fato de o vice-presidente escolhido ser Aureliano Chaves, governador de Minas Gerais e uma pessoa que, por conta da fábrica da Fiat no Estado, teria mantido uma relação estreita com a cúpula da empresa. Uma delegação da Fiat o visitaria naquele mesmo dia para o felicitar.

Na carta que seria enviada, a sugestão era a de destacar o “brilhante desenvolvi­mento do País” e garantir que a empresa desejava “aprofundar sua iniciativa industrial no Brasil”.

Transição. Se os militares eram garantias de estabilida­de, a Fiat não deixava de se preparar para a redemocrat­ização. Ainda em 4 de maio de 1981, uma carta do diretor-presidente da Fiat, Miguel Augusto Gonçalves de Souza, ao administra­dor delegado da Fiat, Cesare Romiti, destacava que o Brasil dava sinais de embarcar por esse caminho. Mas, segundo ele, ao contrário do que teria ocorrido em outros locais do mundo, tal transição estava ocorrendo em um cenário de “paz”.

Para o executivo, o Brasil passara a “adotar princípios democrátic­os de governo que vigoram nas nações industrial­izadas do Hemisfério Ocidental”. Ele ainda aponta que o sindicalis­mo teria passado por uma “reestrutur­ação” para ser “os autênticos representa­ntes sindicais”.

Num apelo ainda por mais recursos da sede da Fiat na Itália às operações no Brasil, o executivo ainda faz uma aposta: em poucos anos, o PIB do País se aproximari­a da Itália, Canadá e Inglaterra. Não havia, segundo ele, motivo para não ampliar os investimen­tos no Brasil.

Procurada pela reportagem, a Fiat no Brasil optou por não comentar o conteúdo dos próprios arquivos.

 ?? FIAT–1976 ?? Discurso. Giovanni Agnelli, neto do fundador e então presidente mundial da Fiat, durante inauguraçã­o da fábrica da companhia em Betim (MG), em 1976
FIAT–1976 Discurso. Giovanni Agnelli, neto do fundador e então presidente mundial da Fiat, durante inauguraçã­o da fábrica da companhia em Betim (MG), em 1976
 ?? OSWALDO L. PALERMO/ACERVO ESTADÃO–16/08/1986 ?? Presença. Fiat 147 foi símbolo da montadora no Brasil
OSWALDO L. PALERMO/ACERVO ESTADÃO–16/08/1986 Presença. Fiat 147 foi símbolo da montadora no Brasil

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