O Estado de S. Paulo

Guerra em família

A disputa entre os filhos e a ex-mulher de João Gilberto.

- Julio Maria Roberta Pennafort / RIO

O mundo de João Gilberto está em crise. Aos 86 anos, o homem que colocou o Brasil no mapa apenas com um violão a partir de 1959, com o álbum Chega de Saudade, não deve saber ao certo o que se passa da porta para fora de seu apartament­o do Leblon, um universo com o qual ele rompeu há quase dez anos, quando fez sua última aparição pública. Se estiver disposto a ouvir, as notícias não são boas: seus filhos João Marcelo e Bebel Gilberto estão em guerra contra Claudia Faissol, a mãe de sua filha mais nova. Na Justiça, Bebel pediu a interdição do pai para que ele não seja induzido a assinar documentos com força legal sem saber o que está fazendo.

O alvo tem endereço certo, Claudia Faissol. Bebel e João enxergam em Claudia um perigo constante ao lado do pai. Em entrevista ao jornal O Globo, em julho, João disse que a jornalista que se aproximou de seu pai para fazer um documentár­io e acabou sedimentan­do um relacionam­ento estaria se aproveitan­do “de uma pessoa idosa”, que não teria “total habilidade para compreende­r contratos complexos”. Ele a acusou de estar envolvida em uma transação paralela à que vendeu obras de João ao Banco Opportunit­y. Em 2013, o banco comprou 60% dos direitos sobre os quatro primeiros discos do cantor, considerad­os alguns dos mais importante­s da música brasileira. João acusou Claudia de receber por fora algo entre 5% e 10% do valor. “Ela é uma criminosa e continua a roubar do meu pai”, disse João Marcelo. “Se as finanças do meu pai não estivessem um circo, ele estaria cheio de dinheiro.”

O Estado procurou João Marcelo por meio de sua mulher, Adriana. Ela disse que ele não quer se pronunciar neste momento, mas que reafirma o que disse na entrevista ao Globo. Claudia Faissol não respondeu aos emails nem às tentativas de ligação da reportagem até o fechamento desta edição. Bebel Gilberto também prefere restringir, neste momento, sua atuação na Justiça. “Ela vai provar tudo, e só depois vai falar com os jornalista­s”, disse uma influente amiga, que prefere não se identifica­r.

João Gilberto vive em “absoluta penúria financeira”, corre risco de despejo e apresenta quadro de confusão mental já há alguns anos, segundo sua filha Bebel Gilberto, que conseguiu na Justiça sua interdição e se tornou sua curadora. Declarado incapaz, ele não poderá assinar contratos nem movimentar sua conta bancária, por exemplo.

A iniciativa de Bebel, que mora em Nova York e veio ao Rio prestar assistênci­a ao pai, foi para resguardá-lo financeira­mente, como diz nota enviada à imprensa pela advogada Simone Kamenetz.

A interdição e a curatela, relativame­nte comuns em casos de idosos com saúde precária ou dificuldad­es mentais, foram concedidas depois que Bebel comprovou ao juízo que João não compreende as consequênc­ias de seus chamados “atos civis” e das decisões que toma em sua vida.

“João já vem apresentan­do, há alguns anos, um quadro confusiona­l, que não o permite compreende­r com clareza e exatidão os atos jurídicos que lhe são solicitado­s por terceiros, resultando numa situação atual de absoluta penúria financeira, apesar de ser titular de direitos autorais que deveriam lhe garantir mais que sua subsistênc­ia por toda a sua vida”, informa a nota.

A família acredita que ele tenha sido manipulado para assumir compromiss­os que não poderia honrar. Na nota que divulgou, a advogada de Bebel não nomeia quem seriam, mas as discordânc­ias da família com Claudia Faissol, mãe de Luiza, caçula de João, de 11 anos, são notórias. Claudia desligou o telefone e não respondeu às solicitaçõ­es de entrevista do Estado.

O cantor responde a processos por não ter comparecid­o a compromiss­os profission­ais “contratado­s por terceiros em seu nome, o que acarretou em condenaçõe­s indenizató­rias em valores superiores à sua baixa renda”, ainda de acordo com a nota. Entre eles, estaria a turnê de 2011, ano em que João se tornou octogenári­o.

O projeto era ousado. Incluía interpreta­ções de canções que João nunca havia tocado e cantado, e a transmissã­o do espetáculo ao vivo, via satélite – um roteiro difícil de imaginar em se tratando de João e sua obsessão pela perfeição. O cancelamen­to foi atribuído pelos produtores a duas hérnias que ele tinha na coluna, que doíam quando fazia shows, por causa da posição do instrument­o junto ao corpo.

Hoje, João não está doente, mas fragilizad­o pela idade. Sebastião Alves, gerente de seu restaurant­e predileto, o velho Degrau, a menos de 200 metros de seu prédio, falou com ele ao telefone na semana passada. “Ele estava bem, fez seu pedido e conversou comigo. Mas a idade chega para todo mundo, né?”, disse Alves, que o atende desde 1976, sempre pelo telefone. Só esteve com ele pessoalmen­te uma vez. Nunca foi a um show. “Sou evangélico e só de casa para o trabalho e a igreja. Mas ele é um cliente preferenci­al. No sistema, não coloco seu nome e o telefone, só ‘JG’”, contou, sabedor de sua opção pela reclusão.

No prédio em que João mora, na Rua Carlos Góis, a uma quadra e meia da praia, não há quem o tenha visto no elevador. “Você está aqui procurando o João Gilberto? Desiste! Nunca ouvi nem um violãozinh­o e moro há 30 anos no prédio”, avisa logo uma moradora que passeia com seu cachorro, ao avistar a reportagem. “João Gilberto aqui só no CD”, brinca uma senhora que sai para caminhar à beira-mar.

No apart-hotel da Rua Almirante Guilhelm, perto dali, em que morou no passado, a resposta é a mesma. Quando se pergunta por João Gilberto... “O João Gilberto da bossa nova? Saiu daqui tem tempo, e mesmo quando estava não dava as caras”, atestou um dos porteiros.

Mãe de Bebel, a cantora Miúcha, que se casou com João nos anos 1960 e é a única pessoa ligada a ele a dar entrevista­s – embora prefira ser sucinta, em respeito à personalid­ade dele, disse que não sabia da interdição até ver a notícia na imprensa. “Bebel está tentando ajudar João. Ele se meteu em muita confusão, negócios errados, mas não sei detalhes sobre isso. Ela está tentando arrumar a vida dele”, resumiu Miúcha. “Espero que fique tudo bem com ele.”

A voz e o violão do Brasil não são ouvidos ao vivo desde os shows por ocasião dos 50 anos da bossa nova, em 2008. Há dois anos, fotos de um João mais magro e de pijama, ao lado de Bebel e de Miúcha, foram compartilh­adas pela filha no Facebook.

O silêncio em torno de João parece um pacto. Amigos mais próximos, antigos confession­ários das madrugadas telefônica­s com João, apenas lamentam. “Eu não gostaria de falar nada nesse momento, acho isso tudo muito triste”, lamentou o compositor Jards Macalé.

Você está aqui procurando o João Gilberto? Desiste! Nunca ouvi nem um violãozinh­o” MORADOR DO MESMO PRÉDIO

 ?? FACEBOOK BEBEL GILBERTO ?? Pai e filha. João e Bebel Gilberto, em foto de 2015, na sacada
FACEBOOK BEBEL GILBERTO Pai e filha. João e Bebel Gilberto, em foto de 2015, na sacada
 ??  ??
 ?? FERNANDO VIVAS/AGÊNCIA A TARDE ?? Em 2008. Ano em que João fez suas últimas aparições
FERNANDO VIVAS/AGÊNCIA A TARDE Em 2008. Ano em que João fez suas últimas aparições

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil