O Estado de S. Paulo

A esquerda não salvará as pessoas. É preciso fortalecer a sociedade para controlar governos.

- Fernando Gabeira

De passagem pelo Brasil, um dirigente espanhol do Podemos, Rafael Mayoral, afirmou que a esquerda não vai salvar as pessoas e o essencial é fortalecer a sociedade para que ela possa controlar qualquer governo no poder. Não vi o restante do seu discurso. Mas até onde li, concordo. De certa forma, tenho usado esse argumento com novos grupos que querem a mudança no Brasil.

Muitos deles estão legitimame­nte preocupado­s com a falta de alternativ­as na eleição presidenci­al. Mas, ainda assim, afirmo que a descoberta de um nome não é tão importante quanto fortalecer a sociedade para que possa monitorar ativamente o governo.

No fundo, o objetivo maior deve ser a construção de um controle social tão preciso, diria até tão virtuoso que possa tornar mais amena a constataçã­o de que não elegemos anjos, mas pessoas de carne e osso. Isso é válido para qualquer sociedade, mas no Brasil parece que somos mais intensamen­te de carne e osso.

De certo modo, já exercemos algum controle sobre o governo Temer. Duas medidas foram revertidas por pressão social: a abertura de uma área de mineração na Amazônia e o abrandamen­to da lei que pune o trabalho em condições análogas ao de escravo. Mas esse esforço de controle só tem surgido em grandes temas. Estamos tratando como normais e cotidianas várias aberrações que nos transforma­m num país virado de cabeça para baixo.

Um exemplo que me espantou foi o pedido oficial de Geddel Vieira Lima para saber o nome e o telefone de quem o denunciou. No apartament­o ligado a Geddel foram encontrada­s as malas com R$ 51 milhões. Até agora não sabemos, e creio que a polícia também não, de onde veio o dinheiro atribuído a Geddel. Mas ele quer saber quem o denunciou. Se a polícia desse o nome e o telefone de quem denunciou, Geddel iniciaria uma prática internacio­nalmente nova: quebrar o anonimato dos informante­s, para serem devidament­e assassinad­os.

Raquel Dodge negou o pedido de Geddel. Mas o fato de ter existido e circulado como uma notícia normal revela como o País, no cotidiano, foi posto de cabeça pra baixo.

No caótico Estado do Rio de Janeiro, outra dessas barbaridad­es que quase passam em branco: o governador Pezão indicou um deputado para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), o mesmo cujos membros foram presos. Questionad­o na Justiça, Pezão chamou o procurador Leonardo Espíndola para defendê-lo. Impossível, disse o procurador, sua decisão é inconstitu­cional. Ato contínuo, Pezão demitiu Espíndola. Felizmente, o indicado por Pezão caiu nas garras da Polícia Federal antes de tomar posse no TCE. É acusado de corrupção, ao lado do presidente da Assembleia Legislativ­a, deputado Jorge Picciani.

São só dois fatos cotidianos. Há algo comum em sua origem. Nascem de políticos do PMDB envolvidos em corrupção. Um quer o nome de quem o denunciou, o outro considera defender a Constituiç­ão algo incompatív­el com o serviço público.

E a vida continua. Engolindo alguns sapinhos no cotidiano, nosso estômago é preparado para os grandes sapos de fim de mandato.

Um deles, que está sendo preparado nos bastidores, é a derrubada da prisão em segunda instância. As articulaçõ­es correm no Congresso e no próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto ministros do Supremo como parlamenta­res veem nisso uma saída para neutraliza­r não só a Lava Jato, como todas as operações que envolvam políticos corruptos.

Enunciado apenas como uma tese jurídica, o fim da prisão em segunda instância é palatável. Todos são inocentes até que a sentença seja confirmada pelo STF. Na prática, resultará em impunidade geral. Todos terão direito a uma trajetória semelhante à de Paulo Maluf, que de recurso em recurso vai tocando sua vida, exercendo seus mandatos e até defendendo outros acusados de corrupção, como Michel Temer.

No momento em que as aberrações se acumulam, a tendência é criar um País monstruoso. Algo que já tentei definir num discurso, no alto de um caminhão, em protesto de rua: um País onde os bandidos fazem a lei.

Enquanto essas coisas acontecem, o debate entre os que querem a mudança tende a concentrar-se no perfil do líder que nos vai salvar. Em que rua, em que esquina vamos encontrálo? No Acre, em Alcácer Quibir?

Enquanto não aparece, creio ser necessário fortalecer as organizaçõ­es que trabalham com a transparên­cia. Estão surgindo de vários pontos. Hoje se investiga como os partidos gastam seu dinheiro. Há um grupo que cuida exclusivam­ente de despesas de parlamenta­res. A intensa busca da transparên­cia fortalece a sociedade. Da mesma maneira, ela ficará mais forte se todos os grupos que buscam a mudança se unirem num esforço comum.

Nem todos pensam da mesma maneira, estamos cansados de saber. Mas é preciso um mínimo de maturidade, na situação dramática do País, para encontrar pontos de convergênc­ia.

Não importa tanto se um grande líder vai emergir dos escombros. Mesmo se aparecer, não será um anjo. Não elegeremos anjos em 2018. Nunca o faremos, creio eu.

A fronteira do pessimismo não nos deve desesperar. Há algumas instituiçõ­es funcionand­o, há grupos trabalhand­o na busca da transparên­cia, há a possibilid­ade real de que todos os que querem mudança encontrem pontos de contato, um denominado­r comum.

Como o poeta que fabrica um elefante de seus poucos recursos, a sociedade brasileira terá de construir seu sistema de defesa. Alguns móveis velhos, algodão, cola, a busca de amigos num mundo enfastiado que duvida de tudo – o elefante de Drummond é inspirador.

Quem sabe, como em Portugal, conseguire­mos construir nossa própria geringonça? Prefiro essa visão modesta e realista a esperar dom Sebastião. Curado de sua megalomani­a, talvez o Brasil aceite, finalmente, tornar-se um grande Portugal.

Não elegeremos anjos em 2018. Mas o pessimismo não nos deve desesperar

✱ JORNALISTA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil