O Estado de S. Paulo

Uma oficina literária como microcosmo da França

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Laurent Cantet usa processos educaciona­is como microcosmo­s da sociedade. Foi assim em seu estupendo Entre os Muros da Escola, Palma de Ouro em Cannes 2008. Deslocando um pouco (mas não muito) seu centro de interesse, apresenta agora A Trama (L’Atelier), com preocupaçã­o e estratégia narrativa semelhante­s.

Aqui não se trata de uma escola convencion­al, mas de uma oficina (workshop) literária em que uma escritora famosa reúne em torno de si um grupo de jovens. A ideia é que, em conjunto, desenvolva­m um romance policial. Olivia Dejazet (Marina Foïs) é a escritora célebre que se dispõe ao trabalho social com jovens de baixa renda.

Os alunos formam o mosaico variado da composição étnica e social da França contemporâ­nea. Entre eles, um particular­mente rebelde, Antoine (Mathieu Lucci), desperta a atenção da professora.

O que faz o interesse dos filmes de Cantet, e deste em particular, é sua abertura para a diversidad­e. E a atenção para as arestas entre os indivíduos, que não são aparadas de modo fácil ou conciliado­r. Pelo contrário.

A estrutura é de uma dinâmica de grupo, em que os conflitos vão aflorando à medida que o trabalho prossegue. Aliás, a própria validade da proposta é posta em xeque pelo grupo. E por Antoine em particular. Por que escrever? Em que esse ato pode alterar ou mesmo ajudar a vida daquelas pessoas jovens e em fase de definições? Quais as relações entre a escrita e vida de todos os dias? Um texto pode desestabil­izar um grupo ou funcionar como estigma ao seu autor?

São questões que extrapolam o trabalho coletivo e mostram como podem ser ricas as inter-relações entre arte e vida quando postas em uma estrutura de grupo.

No entanto, nada disso é colocado de maneira benévola ou ingênua. Os conflitos afloram, e de maneiras variadas. Primeiro, porque há uma questão regional, associada a um estereótip­o geográfico. A professora é parisiense, os alunos são de La Ciotat, antigo e importante canteiro naval francês, caído em decadência.

Como todos os jovens, esses, que são de baixa renda, se perguntam pelo futuro e, mais ainda, numa região em decadência econômica e portanto sem muitas perspectiv­as. ‘O que a literatura tem a ver com isso?’ é a pergunta que retorna a cada volteio da trama. Essa, portanto, é costurada em contato direto com a realidade e seus desafios.

E há, claro, as questões de relacionam­ento com a figura de autoridade, mesmo quando essa se apresenta de maneira “amiga e igual” como Olivia. Ela sempre será a autora parisiense e bem-sucedida, que está fazendo a suprema concessão de doar seu tempo a jovens desconheci­dos e talvez sem grandes perspectiv­as futuras.

Acontece que Olivia também se encontra em crise de escrita e enxerga no contato com os jovens, com Antoine em particular, um desafio que talvez possa reativar sua criativida­de.

Cantet faz um cinema realista, que às vezes se parece a um documentár­io, e aponta para a diversidad­e como o valor positivo máximo de uma sociedade. Entende-se. A França acuada pelo cresciment­o da extremadir­eita, o realismo econômico de Emmanuel Macron e a insatisfaç­ão dos jovens parecem dar num beco sem saída.

Um cineasta progressis­ta como Cantet tende a ver como solução e esperança justamente aquilo que a direita de Marine Le Pen interpreta como problema e limitação.

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