O Estado de S. Paulo

A dolorida e, ao mesmo tempo, poderosa despedida da diva

- CRÍTICA: Pedro Antunes

Arde. Machuca também. E, por mais contraditó­rio que pareça, também aquece o peito. Sharon Jones gravou um último disco antes de morrer, em novembro do ano passado. Lutava, numa batalha pessoal e ingrata contra o próprio corpo, e gravava Soul of a Woman, lançado nesta sexta-feira, 17, pela Daptone Records, ao lado da sua banda, os Dap-Kings.

Era um furacão de artista essa Miss Jones. Sem deixar transparec­er a sombra que lhe atordoava, aquele câncer pancreátic­o que tirou-lhe a vida, ela seguiu pela busca incessante pelo timbre perfeito para sua voz. Aos 60 anos, com tanto para lidar, Sharon Jones preparava um último presente. Um grito de liberdade e euforia – e um pouco de dor, é verdade – como segue o livro de boas maneiras da soul music, do qual a cantora é uma das autoras.

Não era para surpreende­r – a força dessa mulher –, mas ainda estonteia apertar o play em um novo disco dela e ser impactado pela sua voz faminta. É Matter of Time – ou “questão de tempo”, em uma tradução livre para o português – a responsáve­l por iniciar a jornada pelo canto derradeiro de Sharon Jones. Uma canção otimista, tão necessária para os tempos esquisitos como esses nos quais vivemos. Previa a cantora que a “justiça enfim vai chegar”, “que a liberdade vai significar ser livre” e “todas as pessoas estarão unidas”. Sharon Jones não precisou ver Donald Trump, esse senhor com um gosto por muros enormes, sentado no Salão Oval da Casa Branca, para prever o desânimo que alcançaria as pessoas em escala global. Mais do que entender os futuros dias cinzentos, ela já trazia no seu canto, na abertura do seu disco, a solução e o pedido de paciência.

O videoclipe que acompanha a canção no lançamento, contudo, exibe imagens dos bastidores das últimas turnês de Sharon Jones, sua animação no palco e à dedicação com fãs. O sorriso dela reexibido ali a cada execução do vídeo no YouTube é uma lição para se levar para a vida. Que força, meus amigos.

Matter of Time é o cartão de visitas de Soul of a Woman, essa declaração de euforia. E é seguida por Sail On, cujo “ooooooh, no” cantado de forma alongada por Sharon Jones, apresenta, para quem ainda poderia duvidar, a boa forma das cordas vocais e do gogó dela. Seus Dap-Kings criam a base para que ela possa brilhar. Têm gingado, endossado por linha de baixo que rouba a cena e uma sessão de sopros de dar inveja.

Cada nota pontuada é certeira, porque os Dap-Kings – também a banda de Amy Winehouse durante a sua excursão pelos Estados Unidos – são experiente­s em criar álbuns sem gordura e excessos. É uma injustiça que a parceria entre banda e Jones jamais tenha levado um Grammy para casa. O mais próximo que chegaram disso foi com o álbum Give the People What They Want, de 2014, indicado entre os cinco melhores na categoria de melhor álbum de R&B, vencido inexplicav­elmente por Love, Marriage & Divorce, de Toni Braxton e Babyface.

Sharon Jones, por conta do tratamento com quimiotera­pia, perdeu seus cabelos, mas sempre se recusou a usar perucas. Apresentav­a-se como era. Até quando a voz lhe faltava na mão, como na tocante These Tears (No Longer For You), Jones era legítima. E ela queria que esse disco chegasse a ver a luz do dia. O play nesse álbum final, por mais doloroso que tenha sido, foi por ela. Arde e aquece.

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JACOB BLICKENS Adeus. Sharon Jones morreu em novembro do ano passado
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SHARON JONES & THE DAP-KINGS ‘SOUL OF A WOMAN’ DAPTONE RECORDS; PLATAFORMA­S DIGITAIS

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