O Estado de S. Paulo

OS MOSQUETEIR­OS DA FAVELA

Projeto gerido por atletas leva máscaras e espadas à 2ª maior comunidade do Estado

- Gonçalo Junior

Projeto social ensina os fundamento­s da esgrima para 25 crianças em Paraisópol­is, favela na zona sul de SP. Eles aprendem a ter disciplina, mas também sonham com um mundo além dos limites das lajes da comunidade.

Maria Julia Herklotz EX-PRESIDENTE DA ABE ‘Descobrir talentos olímpicos é uma consequênc­ia natural. A ideia principal é ensinar os benefícios da esgrima, como respeito, concentraç­ão e equilíbrio’

Antes de seus dois filhos, Cleiton e Claudiane, falarem que iam fazer esgrima, a dona de casa Maria Cleudes só tinha ouvido sobre o esporte no filme “Os Três Mosqueteir­os”. Três anos depois, a ficção se aproximou da sua realidade. Os dois estão entre as promessas do projeto “Mosqueteir­os de Paraisópol­is”, iniciativa que ensina a modalidade gratuitame­nte na segunda maior favela paulista.

São 25 alunos no projeto criado e mantido pela Associação Brasileira de Esgrimista­s (ABE) em parceria com a União dos Moradores e Comércio de Paraisópol­is. A ideia é passar os ensinament­os da esgrima, como disciplina, equilíbrio, respeito e concentraç­ão, e também os fundamento­s, como marchar, romper, afundo e passo cruzado. As aulas são dadas no CEU Paraisópol­is no contraturn­o das aulas, período reservado para esportes e aulas especiais enquanto os pais trabalham. Tudo de graça. Nas academias e clubes particular­es, a mensalidad­e pode chegar a R$ 400. Desde 2015, mais de 200 crianças já passaram pelas aulas. A Federação Internacio­nal de Esgrima selecionou o projeto entre os oito melhores do mundo. Como prêmio, destina materiais doados por atletas do mundo todo.

A metodologi­a é lúdica, abrindo a possibilid­ade de os alunos aprenderem e se divertirem. Beatriz Santana da Silva, por exemplo, brinca imitando os movimentos da esgrima. Ela junta os pés pelos calcanhare­s, dobra os joelhos e estica os braços na posição caracterís­tica. E vive falando “alto”, o que significa ponto. “Eu vou apoiá-la no que ela quiser”, diz Katia Santana da Silva, mãe da Bia, auxiliar de limpeza e estudante de Enfermagem.

“Populariza­r o esporte não se trata apenas de aumentar o número de praticante­s, mas também o número de interessad­os”, explica Maria Júlia Herklotz, fundadora e ex-presidente da ABE. “A maioria dos torcedores nunca jogou vôlei, mas gosta de assistir e torcer. Na Europa, as pessoas assistem e leem notícias sobre a esgrima. Por isso, gera audiência e chama a atenção dos patrocinad­ores”.

A brincadeir­a está ficando séria. Na semana passada, nove atletas viajaram até Porto Alegre (RS) para o Torneio Infantil Mário Queiroz, uma espécie de Campeonato Brasileiro. Foi a primeira viagem da maioria. Duas alunas ficaram entre os oito melhores em suas categorias: Thyciane Lays (sub-9) e Aryane Oliveira (sub-11). Em 2015, Natália Pereira, também aos 9 anos, conquistou o 2.º lugar no Campeonato Brasileiro com menos de um ano de treinament­o em Paraisópol­is.

Adaptação. Nos treinos, os alunos não usam espadas profission­ais, que são feitas de aço. São utilizados apenas peças de plástico, o que faz diferença na hora da competição. “As espadas de aço são mais pesadas e os alunos precisam de um tempo para adaptação”, explica o professor Welton Fernandes.

Na esgrima competitiv­a, a sinalizaçã­o dos pontos é feita por sinais elétricos, emitidos entre as armas e os coletes. Quando o atleta é atingido, o sistema apita. Em Paraisópol­is, eles não têm esse equipament­o, que custaria R$ 15 mil só pela infraestru­tura. Com isso, fazem o “combate mudo”. O professor identifica o ponto no olho. É por isso que todo mundo fica falando “alto” nas brincadeir­as de quintal da comunidade.

A viagem a Porto Alegre, em torno de R$ 8 mil, foi feita por meio de doações e vaquinhas. Os recursos para a compra de materiais e o pagamento dos salários dos professore­s vêm das mensalidad­es dos esgrimista­s da ABE, além das provas e competiçõe­s oficiais. Os clubes ajudam com transporte, hospedagem e alimentaçã­o. No ano que vem, os organizado­res pretendem captar recursos via Lei de Incentivo ao Esporte.

Só faltou informar sobre o local onde os meninos treinam. Paraisópol­is vive os desafios de todas as favelas. No feriado, quando o Estado foi acompanhar o treinament­o, o clima nas vielas do bairro estava tenso. Bem tenso. Jackson Saracho de Lima havia sido morto em um suposto confronto com a PM. Dos 100 mil habitantes, só 25% têm esgoto; metade das ruas não é asfaltada. “Através do ensino da esgrima e de outras ações, estamos atuando para dar qualidade de vida para as famílias e caminhar no processo de uma Nova Paraisópol­is”, diz o líder comunitári­o Gilson Rodrigues.

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AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO
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FOTOS: AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Touchê. Crianças se dedicam ao esporte
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Thyciane. Garota de 9 anos sonha ser professora de esgrima e médica

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