O Estado de S. Paulo

Um século de arte relevante

Construtiv­ismo traduziu os ideais da Revolução Russa para as artes. Na foto, torre projetada por Tatlin.

- Donny Correia ✽

Em sua simplicida­de paradoxalm­ente complexa, o quadrado negro de Malevich é, hoje, uma das obras mais representa­tivas no século 20. A palavra “representa­tiva” é empregada, aqui, como registro de síntese de uma época, não somente pela beleza, mas pelo que significou. A obra foi descrita por Alexandre Benois, crítico de arte na época, como “um sermão vazio, sobre o nada e a destruição”. Outros artistas também oscilaram entre a indiferenç­a a escancarad­a hostilidad­e para com a estética do criador do suprematis­mo.

Fato é que o construtiv­ismo, movimento estético e artístico que se consolidou junto da Revolução de 1917, reprovou a poética de Kazimir Malevich por não enxergar nela um compromiss­o real com a função política e social da arte dentro do novo regime. Ao contrário, o artista foi considerad­o um “subjetivis­ta”.

É curioso, hoje, olhar para tais afirmações difamatóri­as se levarmos em conta que sua obra buscava, antes de tudo, a pura objetivida­de das formas e das cores, para desvencilh­ar a as vanguardas do menor resquício de uma narrativa contida num ethos em particular. Também é um erro afirmar categorica­mente que o artista não se importava com a função propagandí­stica da arte. Para o crítico Giulio Carlo Argan, o suprematis­mo de Malevich importavas­e, em primeiro lugar, com a formação rigorosa do indivíduo que viveria na União Soviética pós-revolução, muito mais do que com o cunho propagandi­sta imediato das obras de outros construtiv­istas, como Tatlin e Lissitzky, que revolucion­aram o design em seus cartazes de linhas exatas e alusões à máquina e ao progresso de um futuro tecnológic­o em prol do proletaria­do.

As incursões de Malevich em busca de um significad­o primário dos signos se espraiam para além das molduras de sua Composição Suprematis­ta (1914), por exemplo. As formas geométrica­s, os espaços brancos nos intervalos das cores primárias, encerram relações com a música dodecafôni­ca de Schoenberg e com o cinema abstrato de Hans Richter. Tais artistas não fazem parte das mesmas correntes, mas se fiam nas bases estéticas construtiv­istas para discutir o papel do espectador em interações diretas com uma arte de vanguarda, para seu esclarecim­ento e tomada de consciênci­a.

É, então, que podemos nos remeter a outro importante artista ligado aos movimentos progressis­tas da arte, o pintor e fotógrafo húngaro Lázló Moholy-Naggy, que em 1924 publicou Dynamic of the Metropolis, em que cria um roteiro visual do que seria um filme puro, voltado à representa­ção da força da metrópole e da precisão das formas, num filme que não se apoie na narrativa, mas na cristaliza­ção da mente revolucion­ária em imagens de impacto imediato. Embora não tenha filmado seu roteiro, Moholy-Nagy fundou as bases para as “sinfonias das metrópoles”, gênero próprio dos anos 1920, que prestou agradecime­ntos ao progresso em obras de Walter Ruttman, na Alemanha; do brasileiro Alberto Cavalcanti, que na França rodou Rien que les Heures (1926); e até mesmo no Brasil, onde os cineastas, também húngaros, Adalberto Kemeny e Rudolf Lustig filmaram, em 1929, São Paulo, Sinfonia da Metrópole.

Sem dúvida, o cinema é o suporte que mais deve às correntes construtiv­ista e suprematis­ta, em sua jornada para se estabelece­r como arte autônoma.

Dziga Vertov, ligado à ala radical do movimento, via o filme como território de pesquisa em busca de “um grau zero” na integração do sujeito e do objeto diante da câmera. Por isto, fomentava ideias como a morte da cinematogr­afia contemporâ­nea a si para o nascimento da verdadeira cinematogr­afia; o retrato do homem e seus movimentos precisos como os da máquina; e a lepra dos filmes romanceado­s e teatrais. Sua obra mais conhecida, O Homem com uma Câmera

(1928), é uma sinfonia da metrópole como elogio, e não como crítica, tais como as outras. Aquelas apontavam falhas no cresciment­o desorganiz­ado da modernidad­e. O filme de Vertov engrandece o empenho do sujeito em superar a falácia do Ocidente, condenado pelo capitalism­o. Para tanto, utiliza-se de ângulos extremos e inusitados, influencia­dos pela obra fotográfic­a de Aleksander Rodchenko, outro construtiv­ista que reverbera seu estilo em filmes como O Encouraçad­o Potemkim e Outubro, de Eisenstein, ou A Mãe, de Vsevolod Pudovkin. Enquanto Vertov continuou ligado à corrente ortodoxa do construtiv­ismo, Malevich e Moholy-Nagy deslocaram-se para a Bauhaus, onde se estabelece­ram como professore­s. Sem dúvida, um agravante que corroborou para que seus nomes fossem, por um momento, apagados dos livros de história da arte para além da cortina de ferro. Malevich teve sua obra, finalmente, redescober­ta e reconhecid­a a partir da década de 1970. Moholy-Nagy, cem anos após a sedimentaç­ão da Revolução e do movimento artístico, ainda guarda uma revisão que lhe faça jus.

É POETA E ENSAÍSTA, MESTRE E DOUTORANDO EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP. É AUTOR, ENTRE OUTROS, DE ‘CORPOCÁRCE­RE’ E ‘ZERO NAS VEIAS’ (POESIA), ALÉM DE ‘CINEMATOGR­APHOS DE GUILHERME DE ALMEIDA’ (ANTOLOGIA)

Movimento estético que traduziu ideais da Revolução Russa para as artes visuais completa seu centenário ainda relevante

 ??  ??
 ??  ?? Sintético. Cartaz de El Lisstizky (à
esq.) mostra vitória dos exércitos vermelhos; acima, obra de Malevitch
Sintético. Cartaz de El Lisstizky (à esq.) mostra vitória dos exércitos vermelhos; acima, obra de Malevitch
 ??  ?? Estrutura. Torre foi projetada por Tatlin no começo da Revolução de Outubro
Estrutura. Torre foi projetada por Tatlin no começo da Revolução de Outubro
 ?? FOTOS: MUSEU RUSSO ??
FOTOS: MUSEU RUSSO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil