O Estado de S. Paulo

UM MÊS DE LUTO E ESPERANÇA

Paraplégic­a, adolescent­e que levou três tiros comemora os pequenos progressos

- André Borges

Uma família comemora pequenas conquistas dia após dia. Outra enfrenta o luto e exercita o perdão. Um mês depois de um estudante de 14 anos abrir fogo contra os colegas da 8.ª série do Colégio Goyases, em Goiânia, matar dois e ferir quatro, os pais de Isadora de Morais, que está paraplégic­a e passa por reabilitaç­ão, acreditam que ela ainda poderá retomar os movimentos, relata o enviado especial André Borges. Bárbara Melo e Leonardo Calembo (foto), pais de João Pedro, morto aos 13 anos, têm de explicar aos filhos menores o que houve.

“Papai, papai! Ele vai entrar aqui! Eles vão me pegar, papai! Estou com medo, com muito medo!” Ao ouvir os gritos e o choro da filha Isadora deitada na maca, Carlos Alberto Morais pulou da cadeira e a abraçou. A menina estava em pânico. Morais sussurrou algo em seu ouvido para tranquiliz­á-la e, aos poucos, o desespero cedeu. Restou um choro baixo, até que a jovem, prostrada, dormiu novamente.

Tem sido assim desde que Isadora de Morais, de 14 anos, deu entrada no Centro de Reabilitaç­ão e Readaptaçã­o Doutor Henrique Santillo (Crer), em Goiânia. Com o uso de remédios e a presença de médicos e parentes, ela tem conseguido dormir algumas horas à noite, mas é constantem­ente revisitada por pesadelos.

As imagens e os pensamento­s que atormentam Isadora brotam da tragédia que há um mês chocou o País.

Na manhã de 20 de outubro, um aluno de 14 anos entrou na sala do 8.º ano do Colégio Goyases, no Conjunto Riviera, bairro de classe média de Goiânia, abriu a mochila, sacou uma pistola calibre 40 e disparou 12 vezes contra seus colegas. Dois morreram no local e outros quatro sobreviver­am, entre eles Isadora. Sua batalha, porém, está apenas começando. Ela ficou paraplégic­a.

A manhã daquela sexta-feira havia começado como qualquer outra para a família Morais. Na discreta casa da Rua 10, o pai, servidor público, tomou café com os filhos e levou Isadora até o portão da escola. A rua onde moram acaba na porta de entrada do Colégio Goyases. São cerca de 50 metros entre a casa da menina e sua sala de aula.

Às 11h30, quando estava no trabalho, Morais recebeu a ligação da mulher, Isabel, que é professora. Ela tinha recebido a informação de que um tiroteio havia ocorrido na escola e Isadora estaria entre os atingidos. Por meio de uma mensagem no WhatsApp, o irmão da estudante, Vinícius de Moraes, de 17 anos, também recebia a notícia durante uma aula de História, em outro colégio.

A família seguiu em desespero até a escola da filha. Ao chegar ao colégio, a rua já estava tomada por carros da imprensa, ambulância­s do Serviço de Atendiment­o Móvel de Urgência (Samu), do Corpo de Bombeiros e do Instituto Médico-Legal (IML).

Isadora estava entre as vítimas, mas viva. Sob a mira do atirador, recebera tiros na mão, no pescoço e no tórax – o último atingiu sua medula espinhal, entre a nona e a décima vértebra da coluna torácica. Socorrida no Hospital de Urgências de Goiânia, foi sedada, entubada e passou por cirurgias. Os riscos de paraplegia logo se confirmari­am.

Após 20 dias de internação, Isadora deixou a UTI e foi para o Crer, onde iniciou uma nova fase de tratamento. Do umbigo até a ponta dos pés, a jovem não tem mais nenhuma sensibilid­ade ou movimento. O funcioname­nto da bexiga também foi totalmente comprometi­do. “Logo ela vai andar. A gente crê nisso e ela também, mas vai um processo longo, com várias equipes”, diz o pai. “É no tempo de Deus, não no tempo do homem. Muitas vezes a gente é até ingrato, porque pede uma coisa para ser atendido hoje. Mas com certeza o tempo de Deus é maior que o nosso.”

‘Risadora’. A menina que hoje alimenta a fé de voltar a andar é conhecida na família como Risadora, graças ao seu senso de humor e à risada que arranca sorriso de quem está ao redor. Comunicati­va e boa aluna, foi aprovada no 8.º ano já no terceiro bimestre. O irmão, que está em casa, estuda para o vestibular

de Medicina e cuida daquilo que Isadora mais sente saudades: Tonico, um cão shih-tzu de 6 meses. “A gente fala que agora falta o Tinoco para que a dupla caipira fique pronta”, conta Vinícius. A inspiração sertaneja vem de Isadora, que é fã de duplas mais modernas, como Henrique e Juliano, Jorge e Mateus. “Ela adora sertanejo universitá­rio, eu gosto mais de Tropicália, MPB. A gente fica se provocando.”

Isadora ainda deve passar um bom tempo sem ver Tonico. Os próximos 30 dias serão decisivos para saber como, efetivamen­te, será a sua vida. “Sabemos que é uma lesão grave com consequênc­ias sérias, mas não posso afirmar neste momento qual é exatamente a intensidad­e. É preciso ter muita cautela”, diz Válney Luís da Rocha, diretor-geral do Crer.

A bala que atingiu a medula da jovem ainda está alojada na estrutura da coluna vertebral. O trauma provocou um edema que interrompe o estímulo cerebral, causando a paralisia. Com o tempo, o cenário pode melhorar ou piorar. Após quatro dias na reabilitaç­ão, Isadora venceu o primeiro desafio: sentar, o que lhe permitiu tomar banho de chuveiro.

O otimismo e o sentimento de confiança que cercam Isadora, reconhecem os médicos, são fundamenta­is para a recuperaçã­o. “Pacientes com esperança são mais colaborati­vos, participam do processo de reabilitaç­ão e respondem melhor”, diz Rocha. Nesta semana, a jovem deve começar a sair do quarto para passear pelos corredores do hospital em uma cadeira de rodas. O irmão comemora: “Ela vai sair dessa mais forte, não tenho dúvida disso. Ela tem uma alegria incrível de viver”.

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ANDRE BORGES/ESTADÃO
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FOTOS ANDRÉ BORGES/ESTADÃO Rotina. Após dias de luto que seguiram ataque, Colégio Goyases retomou as aulas; Isadora estuda na escola desde o 1º ano do fundamenta­l

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