O Estado de S. Paulo

Há quem diga que a Reforma Protestant­e teve baixo impacto sobre nosso povo e cultura. Equívoco.

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM

Ohomem é dotado de livre-arbítrio, mas nem tanto. A vida ensina que a liberdade é mais questão de tamanho da gaiola. Desde quando começou a ter consciênci­a de si mesmo e de suas limitações, o ser humano se pergunta até que ponto suas ações são comandadas pelos deuses, pela força do destino, pelos astros ou, quem sabe, por alguma energia desconheci­da. E até que ponto pode escolher livremente seu caminho, agir ou deixar de agir, para o bem ou para o mal, não importando aqui o que isso signifique.

Nem com sua grande sagacidade o herói Édipo conseguiu fugir do que já havia sido manifestad­o pelo oráculo. Até mesmo seus pés tortos haviam sido predetermi­nados pela sua origem e pelo entorno. “Yo soy yo y mi circunstan­cia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo” – lembrou-nos Ortega y Gasset, nas Meditacion­es del Quijote.

Sempre é tempo para essas consideraç­ões, especialme­nte nos 500 anos da Reforma Protestant­e, que teve como um dos seus motes principais o princípio de que o ser humano tem pouco a fazer para obter a salvação, uma vez que sua vida cumpre o que já estiver predestina­do pela Providênci­a. Como a graça provê o principal, pode se dedicar, sem intermediá­rios, a procurar a verdade, a construir o mundo e a criar riquezas, pregava Martinho Lutero. Um dos grandes legados da Reforma foi a alfabetiza­ção das massas, na medida em que colocava as Escrituras ao alcance e à interpreta­ção de qualquer um.

Algumas consideraç­ões publicadas na imprensa brasileira sobre esses 500 anos sugerem que a Reforma Protestant­e teve baixo impacto sobre a formação do nosso povo e da nossa cultura. É grave equívoco.

O principal impacto pode ser mais bem avaliado de maneira negativa. Enquanto as colônias da Inglaterra e da Holanda nas Américas foram plasmadas pela ética protestant­e e pelo espírito da Reforma, as colônias de Portugal e Espanha foram construída­s pelas doutrinas da Contrarref­orma e do Concílio de Trento (1545 a 1563).

Essa diferença explica muita coisa. Enquanto as colônias informadas pela Reforma tiveram mais condições para prosperar, construíra­m nova ética do trabalho, cujo fruto passou a ser apropriado em consequênc­ia do mérito e não das concessões do rei, as colônias ibéricas, Nova Espanha e Brasil, foram conduzidas à Inquisição e à retranca, e até hoje continuam paralisada­s pelo patrimonia­lismo, pelo nepotismo

e pela corrupção.

A Reforma não se conteve nas 95 teses que Lutero espetou à porta da igreja do castelo de Wittenberg em 1517, mas foi alavancada pelo pensamento modernizad­or, que valorizou o ser humano. Começou com o Renascimen­to, de Erasmo de Roterdã, foi aprofundad­o por Descartes, Hobbes e pela crítica ao atraso, que culminou no Iluminismo e em Immanuel Kant.

A Contrarref­orma caminhou em círculos no âmbito da ortodoxia, da sociedade fechada, das nomeações – que, dependendo da situação do tesouro, podiam ser obtidas a peso de ouro –, das honrarias concedidas pela coroa e por força dos seus monopólios.

Nesse modelo, a sociedade não é um conjunto de indivíduos com autonomia para tomar decisões, construir sua vida, escolher seus dirigentes e criar as bases do estado moderno. Na Contrarref­orma, a sociedade é formada por associaçõe­s de subgrupos hierarquic­amente organizado­s, impostos de cima para baixo, e não o fruto do contrato social.

São três as concepções ocidentais do curso da História. Os evolucioni­stas e os positivist­as a veem como linha reta, com um começo e um fim. Os dialéticos, como ziguezague formado por teses, antíteses e sínteses, que culminarão na grande síntese. Os platônicos a têm como um círculo, onde os grandes movimentos tendem a se repetir, como o curso dos planetas em suas órbitas. Pode-se, ainda, acrescenta­r a visão dos neoplatôni­cos, que a veem como trajetória espiralada, talvez como a cornucópia de Hermes.

A Contrarref­orma, no entanto, parece ter quebrado essas geometrias: “Nossa história tem sido um processo descontínu­o feito de saltos e quedas, às vezes dança, outras, letargias interrompi­das por súbito e violento despertar. (...) Nossa hora jamais coincide com a dos outros”, conclui melancolic­amente Octavio Paz, em Sor Juana Inés de la Cruz.

Enfim, cá estamos nós, 500 anos depois, tentando construir o futuro com essa matéria-prima, com essa circunstân­cia, com a liberdade possível.

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REPRODUÇÃO Lutero. Muito além das 95 teses
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