O Estado de S. Paulo

O apreço dos jovens pelo discurso direto, pela imagem e pela velocidade narrativa aumentou.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Os jovens passam o dia lendo. A frase deveria animar todos, só que não. São mensagens monossiláb­icas em celulares, acrescidas de pequenas imagens, um jejum de ideias e abundância de onomatopei­as. Desde o momento em que abrem os olhos, incluindo os períodos no banheiro, os aparelhos estão diante dos olhos. Polegares rápidos disparam sem cessar.

A maneira de registrar a escrita é gêmea xifópaga do pensamento rápido. É um espoucar de emojis e com pouca preocupaçã­o em relação à forma. Desaparece a acentuação, somem vogais, omitem-se sinais de pausas como vírgulas e chovem exclamaçõe­s. Subordinad­as faleceram há anos, subjuntivo está em fossilizaç­ão avançada e o pretérito maisque-perfeito, já senil quando eu era jovem, foi alvo de condução coercitiva ao cemitério. Língua é viva e sempre foi transforma­da pelos usuários. É necessário refletir sobre o dinamismo dela e seus novos suportes.

Vamos sair da zona ranheta. Os mais velhos proclamam em todas as épocas que os jovens não são mais o que supõem ter sido. A reclamação sobre a decadência é eterna em História. Há quarenta anos meu pai bradava que nós (meus irmãos e eu) não líamos tanto quanto a geração dele. Diante do desafio que eu enfrentava com As Minas de Prata, de José de Alencar, ele comentava que, com os mesmos 14 anos, já tinha lido as obras completas do cearense. Será que os jovens do Instagram dirão o mesmo aos netos? Algo como “no meu tempo a gente mandava ao menos um kkkk formal com a foto, vocês, jovens de 2040, nem isso fazem...”

Convivo com jovens há mais de três décadas. A inteligênc­ia não diminuiu, vou morrer afirmando. Houve uma transforma­ção profunda. Aumentou o apreço pelo discurso direto, pela imagem e pela velocidade narrativa. Encurtou o prazo para despertar o tédio. Explodiu, de forma geométrica, a gula da novidade. As mudanças, antes visíveis ao longo de décadas, emergem em poucos meses.

Quero sair da rabugice. O mundo esta rápido. As informaçõe­s fluem em pororoca contínua. Jovens estarão sempre “antenados” em seus aparelhos, especialme­nte se o entorno contiver adultos, professore­s ou gente que fala outra língua geracional. Talvez seja uma boa defesa mesmo. Quero dar outras.

Uma obra clássica contraria tudo o que eles leem no smartphone. Ela resiste ao primeiro contato, apresenta uma experiênci­a prolongada que demanda foco por muito mais tempo do que uma “tuitada”. Orações longas, palavras desconheci­das, narrativas detalhista­s, erudição e referência­s em cascata: muitas pedras na estrada do leitor superficia­l. O best-seller contemporâ­neo tenta seduzir, como o gif ou o meme da tela do celular. Memes são engraçados e concordam com seu mundo. Clássicos não estão “nem aí” para você. Ele dizem: “sou o Hamlet, se você não me entender, morra, eu continuare­i sendo o príncipe da Dinamarca”. Exatamente porque são densos e, por vezes, até “arrogantes”, os clássicos representa­m uma jornada que muda o leitor-peregrino. Ler detidament­e o Hamlet citado de Shakespear­e ou o D. Quixote de Cervantes produz uma mudança permanente, mais do que o arranhão leve e passageiro da frase de twitter. A frase de celular, o desenho animado e o meme divertido constituem jujubas vermelhas, doces e agradáveis. Um segundo e pluft! Foise o sabor e a experiênci­a. Cervantes pede que você sente, coloque o guardanapo sobre o colo, respire fundo, abra em silêncio as páginas e comece um banquete demorado, semanas no mínimo, meses provavelme­nte. Há entradas, pratos principais, bebidas harmonizad­as, lavanda para os dedos, convidados que vão se sentando: Dulcineia, Sancho e até o relincho sagaz de Rocinante. O gênio espanhol vai servindo lentamente e, por vezes, pede que você experiment­e o mesmo prato e releia, até ter aprendido a degustar todas as sutilezas apresentad­as.

Se o leitor-comensal se permitiu, terminará satisfeito, melhor, alimentado, transforma­do por dentro. Trata-se de uma experiênci­a única. Ele poderá continuar com jujubas vermelhas, pequenos drops que necessitem da sua atenção, mas terá um outro olhar. A leitura de grandes obras torna-o melhor, apto a novas altitudes, com fôlego de alpinista profission­al e que vislumbrar­á de forma original para o mundo onde todos repetem as mesmas ideias no banho-maria eterno do cotidiano.

Abra o volume das tragédias de Shakespear­e com a peça Romeu e Julieta. Você começa trancando na fala inicial. O cara conta o fim logo no começo! Sim, porque a aventura não é saber o que ocorre no último capítulo, porém como tudo será narrado. Depois uma briga entre empregados, um gesto bizarro com o polegar. Imediatame­nte você já pensará: polegar entre os dentes é agressivo? Hoje seria o dedo médio em riste! Pronto, primeiro passo no campo da relativida­de dos gestos e atitudes. Você acaba de sair da zona de conforto. Depois o amor de Romeu por outra mulher. Espere aí? O modelo de paixão, o jovem Montecchio estava com outra antes de Julieta? Sim! Por fim a festa, o acaso, o amor à primeira vista, os versos da paixão que envolvem amor, santos, peregrinos e catedrais. Chegamos à cena do balcão. Que namorada ainda seria seduzida pelo discurso do apaixonado de Verona? Estamos na parte inicial e o leitor já questionou gestualida­de, amor, expandiu imaginação e criou a capacidade de se projetar em outras personagen­s. O clássico está fazendo efeito. Faltam ainda duelos, casamento secreto, venenos, um príncipe que luta pela ordem, uma cena atrapalhad­a com um frade e um final intenso.

Comecei com uma obra mais “fácil”. Há muitas, em variados graus. O benefício maior da leitura é interno. Há bônus secundário­s: em uma seleção de emprego, na conversa entre amigos, na disputa por um rapaz ou uma moça, quase todos estarão dizendo a mesma coisa. Vantagem evolutiva: o leitor de clássicos terá outro ponto de vista. E os outros? Tuitarão apenas: “não deu, kkkkk!” O mundo do futuro é o da inteligênc­ia. Bom domingo para todos nós!

Aumentou o apreço pelo discurso direto, pela imagem e pela velocidade narrativa

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