O Estado de S. Paulo

Duas falsas narrativas

- SERGIO FAUSTO SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

Na disputa político-eleitoral brasileira se destacam, até o momento, duas narrativas. Ambas falsas. De um lado, a vitimizaçã­o de Lula. De outro, a normalizaç­ão de Bolsonaro. A primeira consiste em transforma­r o expresiden­te em alvo de uma conspiraçã­o armada pelas “elites” para levá-lo à condenação judicial e à inabilitaç­ão eleitoral. “Elites”, como sabemos, é uma figura de retórica deliberada­mente imprecisa com a qual o PT joga segundo as suas conveniênc­ias (não me lembro de o termo ter sido empregado para designar empreiteir­as ou frigorífic­os amigos do rei). A segunda narrativa reside em travestir de liberal convicto um político notório por declaraçõe­s e projetos de lei que nada têm que ver com o liberalism­o, nem econômico, muito menos político.

Tanto uma narrativa como a outra respondem a cálculos político-eleitorais perfeitame­nte racionais do ponto de vista dessas candidatur­as. Se prosperare­m, ambas causarão grave dano ao País.

Estou convencido de que, ao fim e ao cabo, Lula será barrado pela lei das inelegibil­idades, que proíbe a candidatur­a de indivíduos com a “ficha suja”, ou seja, condenados em segunda instância por crimes previstos na Lei Complement­ar 135/2010, entre eles os de corrupção, lavagem de dinheiro, etc. As lideranças do PT devem saber disso. Apostam na candidatur­a de Lula porque ela é a única capaz de manter a perspectiv­a da volta rápida do partido ao poder. Trata-se de uma ilusão necessária, sem a qual a crise e as divisões do partido se aprofundar­iam. Mais ainda, nessa linha de raciocínio, a transmutaç­ão de Lula em líder proscrito atende aos interesses de conservaçã­o do PT a prazo mais longo. Partidos, assim como as nações, necessitam de mitos que permitam produzir sentido de pertencime­nto e coesão entre seus membros, sobretudo quando confrontad­os por dissidênci­as internas ou ameaças externas (neste caso, o castigo eleitoral).

Mesmo sem levá-lo de volta ao poder agora, a vitimizaçã­o de Lula poderá ajudar o PT a conservar a sua unidade, a manter parte de sua força de atração sobre outros partidos e grupos de esquerda e a preservar algo de sua conexão com o eleitorado “lulista”, maior que o petista. Ao menos é no que parecem crer e apostar os dirigentes do PT, pouco dispostos aos riscos da autocrític­a e da renovação partidária. Mal comparando, o objetivo último dessa estratégia é converter o lulismo num peronismo tropical. O defeito da comparação, indicativo do caráter farsesco da narrativa, é que Perón foi de fato apeado do poder por um golpe de Estado, em 1955, e proscrito da vida política argentina por quase 20 anos. Nada semelhante aconteceu aqui.

Não creio que a estratégia petista venha a produzir os frutos pretendido­s. Mas fará estragos no meio do caminho. O mais grave será pôr em xeque a independên­cia do Poder Judiciário e, por essa via, a legitimida­de do regime democrátic­o. Chegará o partido ao ponto de não reconhecer o(a) presidente(a) eleito(a) em outubro de 2018 se Lula for legalmente impedido de disputar as eleições? Promoverá uma campanha internacio­nal de denúncia sobre a suposta ilegitimid­ade das eleições presidenci­ais brasileira­s, o que seria risível, não fosse perturbado­r, dado o apoio do PT às arbitrarie­dades do governo Maduro? Como se não bastasse, a vitimizaçã­o de Lula dificultar­á ainda mais a necessária criação de uma necessária força de esquerda, democrátic­a e não populista, capaz de destilar a experiênci­a do PT e (re)lançar-se na política brasileira.

Passemos a Bolsonaro, que merece menos parágrafos por sua menor relevância. Ele é sintoma do medo que se disseminou pelo Brasil, sentimento em parte derivado de fatores reais, em parte instrument­alizado para provocar pânico na sociedade e assim gerar dividendos políticos em favor de uma agenda ultraconse­rvadora.

O apoio pré-eleitoral ao deputado não reflete apenas a deterioraç­ão das condições de segurança pública. Os que o apoiam se sentem ameaçados também pelo que consideram perturbaçõ­es de uma ordem tradiciona­l idealizada. O que os une é a adesão à truculênci­a na área da segurança pública e à reação a mudanças no plano do comportame­nto (parte delas refletidas em direitos, como o casamento gay). Bolsonaro sustenta orgulhosam­ente uma agenda reacionári­a em relação às drogas (não distinção entre pequenos consumidor­es e traficante­s), à liberdade de expressão (cerceament­o, em nome dos bons costumes) e à definição de família (restritiva dos direitos dos homossexua­is). Defende armar a população e criar a figura penal da legítima defesa do patrimônio para inocentar quem cometer homicídios para proteger bens de sua propriedad­e. Quer abrir definitiva­mente as portas ao faroeste caboclo, na cidade e no campo.

É esse personagem, que fez elogio a um conhecido torturador, abundou sempre em declaraçõe­s homofóbica­s e sexistas e se disse favorável ao fuzilament­o do então presidente Fernando Henrique Cardoso por causa da privatizaç­ão de empresas estatais, é esse personagem, repito, que pretende apresentar-se agora com os trajes de um adepto do liberalism­o. Nessa operação transformi­sta conta com a assessoria de alguns economista­s, de pouca importânci­a, é verdade, e com certa complacênc­ia do chamado “mercado”. Essa complacênc­ia mostra como o liberalism­o econômico, quando desacompan­hado do liberalism­o político, corre o risco de perder a bússola democrátic­a e cair no colo de forças políticas de extrema direita.

A “normalizaç­ão” de Bolsonaro se alimenta do espectro que ronda o horizonte eleitoral, Lula, e, sobretudo, da incapacida­de que as forças de centro têm demonstrad­o para se articular em torno de uma candidatur­a e de um programa para 2018.

As narrativas da esquerda populista e da direita truculenta são falsas. Mas ao menos elas têm uma. O centro precisa elaborar a sua. Antes que seja tarde.

A esquerda populista e a direita truculenta ao menos têm as suas. O centro não se articula

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil